Encarar “Black Mirror: Bandersnatch” apenas como um divertido brinquedo interativo da Netflix com cinco finais diferentes é a forma mais pobre de vivenciar uma experiência rara. As possibilidades oferecidas pelo filme sugeridas no simples ato de apertar um botão colocam o espectador diante de complexas questões morais e reveladoras sobre a sociedade e si próprio.

No recente “A Casa que Jack Construiu”, Lars Von Trier afirma que o artista escancara o lado mais sombrio de sua personalidade em uma obra. Utilizando como porta-voz Jack, o Estripador, personagem vivido por Matt Dillon, o cineasta trabalha a ideia de que a escuridão da mente de um serial killer de um filme está presente em algum canto obscuro da mente do roteirista, diretor, ator.

“Bandersnatch” amplia este leque de possibilidades ao colocar o público como um construtor da obra. O filme chama o espectador para mergulhar neste lado sombrio de si próprio, enquanto, ao mesmo tempo, o confronta com as decisões.

Ambientada em 1984, a trama mostra a história de Stefan (Fionn Whitehead), um jovem programador que está desenvolvendo um game interativo chamado “Bandersnatch”. Para tanto, ele vai precisar cumprir um apertado cronograma. À medida que a pressão aumenta com o fim do prazo, Stefan começa a entrar em paranoia, trazendo à tona um trauma do passado com a mãe e questionamentos sobre o mundo em que vive.

Nos primeiros minutos, “Bandersnatch” aparenta uma boba interatividade entre escolher o melhor cereal e o disco para comprar da forma mais previsível possível. Mas, quando falamos de “Black Mirror”, este mundo simplista termina logo ali. A primeira decisão mais importante – falar ou não sobre a mãe para a terapeuta – já começa a desenhar um pouco dos desafios propostos pelo filme.

Afinal de contas, até aquele momento, Stefan é um garoto introvertido, de poucas palavras, isolado do mundo. Respeitando esta lógica, a escolha mais sensata seria a recusa. Mas, e a nossa curiosidade de querer saber o que ocorreu? Por que não passar por cima da vontade do rapaz? Ele é somente um personagem de uma série de entretenimento da Netflix, certo?

Daí em diante, “Bandersnatch” amplifica as consequências do ato de apertar um botão. As escolhas passam a ser muito mais complexas: quem deve morrer? Enterra ou retalha o corpo? Agride ou não uma pessoa querida? Quase sempre sem pensar, o público sai escolhendo e não reflete sobre o que fez. Através das nossas inofensivas escolhas de apertar um botãozinho, vemos o rapaz ruir psicologicamente. Qualquer semelhança com fake news, difamações espalhadas em redes sociais, comentários absurdos em sites de notícias ou qualquer bobagem dita pela internet não é mera coincidência.

O brilhante roteiro de Charlie Brooker (frequente colaborador de “Black Mirror”) é hábil suficiente para fazer o público se deparar com as próprias escolhas ao colocar Stefan dialogando com o espectador. Interpretado de forma eficiente por Fionn Whitehead, a reação de horror dele coloca o público mais atento em, no mínimo, estado de reflexão e até choque ao se dar conta da desumanidade ordenada.

Esta relação de divindade que criamos em relação ao universo de “Bandersnatch” alimenta a sensação de poder. Tanto que a recusa de Stefan em seguir uma ordem nossa gera desconforto de que algo está errado e precisamos retomar o controle, o que é alcançado na opção seguinte, cumprida à risca pelo protagonista. Porém, igual a premissa defendida pelo filme de que o livre-arbítrio é uma ilusão, este nosso domínio também não passa de mentira, pois, as opções limitadas estão pré-definidas em uma história já gravada.

Mais do que isso: esta sensação de poder ironiza o próprio público ao fazê-lo colocar para fora seu comportamento quase irracional ao não refletir e pensar sobre os atos que faz, deixando nossos monstros mais internos expostos. E se somos Deus para Stefan, a Netflix cabe na mesma condição para nós.

Ou você acha que a escolha da trama ser ambientada na década de 1980 com referências pops a todos cantos, semelhante a “Stranger Things” e “San Junipero”, ser aleatória? Ou referências a George Orwell, Philip K. Dick, Lewis Carroll para nerds/geeks ficarem horas e horas fazendo teorias? Ou que cada clique será estudado pela Netflix para definir novos produtos?

“Black Mirror” genial!