Black Mirror finalmente trouxe sua tão aguardada quarta temporada. Sendo grande mestra quando o assunto é intrigar seu público e questionar o uso de tecnologias, a série apresentou um seguimento diferente em seus novos episódios.

A partir da terceira temporada, o seriado passou a compor o catálogo de originais da Netflix. Com esta mudança também se tornou notável as diferenças em sua abordagem, mesmo dando continuidade ao tipo de temática e conteúdo. Em seu quarto ano, a série apresenta novamente questionamentos importantes com episódios independentes e sem ligação (explícita) entre si, mas comete diferentes erros ao desenvolver suas histórias.

Considerando que esta seja uma série antológica cada episódio possui sua particularidade crítica, assim como um “paranoiometro” que serve como uma referência do quanto seria possível algo correlato ao episódio acontecer na vida real. Desta forma, quanto maior a nota, mais improvável que ocorra algo semelhante.


U.S.S Callister

O primeiro episódio da temporada se apresenta como uma grande homenagem ao seriado Star Trek. Mesmo garantindo uma parte do público com essa principal informação, o episódio dirigido por Toby Haynes possui um interessante desenvolvimento de personagens. Estes se tornam principais responsáveis pelas famosas subversões de personalidade, presente em episódios passados como “Shut Up and Dance”.

O personagem Robert Daly (Jesse Plemons) se torna o ponto mais interessante da narrativa, apresentando um anti-heroi sem intenções de ser carismático. Mesmo mostrando a exclusão social que o personagem é colocado, o episódio ressalta Daly repetindo as mesmas atitudes que lhe fazem mal, se tornando igual ou até mesmo pior do que aqueles que considera como pessoas ruins.

Outro aspecto positivo do episódio é a utilização de duas linhas temporais e ambientes que conseguem ser interessantes isolados ao mesmo tempo que se complementam nos momentos de clímax. Além de despertar maior interesse na trama, esse diálogo entre mundo virtual e mundo físico também ressalta a discussão sobre tecnologia que o episódio propõe.

Ao retratar um jogo virtual, U.S.S Callister mostra o parâmetro de imersão presente em jogos de realidade aumentada. Enquanto em nossa atualidade as pessoas imersas no jogos apresentam reações físicas e sensoriais ao que estão vendo ou com o que interagem, na série o indivíduo se torna totalmente inerte, com reações perceptíveis apenas virtualmente. Além disto, a série também chama atenção para atitudes que existem no ambiente virtual e como estas podem se relacionar no mundo físico.

Provavelmente o único exagero do episódio seja envolver a utilização de DNA na programação de jogos. Seria até mesmo mais interessante se Daly programasse cada um dos personagens a partir da observação de suas características e não apenas por meio de uma máquina (a qual não foi explicada) que aparentemente transfere o DNA da pessoa para sua forma física virtual.


Nível de Paranóia: 7/10



Arkangel

Mesmo com os esforços de Jodie Foster na direção, Arkangel se tornou o episódio mais fraco e até mesmo confuso (não no sentido positivo) da temporada. Abordando a utilização de tecnologias para o monitoramento de crianças por seus pais, o episódio possui ambições muito superficiais, que não vão muito além de seu storyline.

Apesar de apresentar uma história convincente e com potencial em seus primeiros 20 minutos, a trama desanda a partir de seu segundo ato. As personagens se mostram limitadas, caricatas e sem chances de criar empatia ou se relacionar com o público, mesmo se tratando de um tema familiar que facilmente pode ser identificado.

A tecnologia que permite Marie (Rosemarie DeWitt) acompanhar todos os passos de sua filha Sara (Brenna Harding) e além de compartilhar dados sobre sua condição física também permite que a mãe veja tudo aquilo que a filha vê. Com este argumento logo pode-se imaginar uma infinidade de ocasiões e atitudes que todo ser humano normalmente esconde de seus pais.

O potencial presente nesta problemática é explorado de forma inconsistente, resultando em um desfecho rápido e confuso. Provavelmente a moral da história é deixar claro que uma aproximação demasiada pode gerar um distanciamento na mesma proporção. O que, em teoria, parece muito importante e possível de ser visualizado, mas que na prática não conseguiu seguir por este caminho. Importante ressaltar também o grande descuido em “explicar” o funcionamento de anticoncepcionais de forma bem errada, ainda mais se tratando de um momento clímax para a história.


Nível de Paranoia: 9/10



Crocodile

Até que tipo de extremos o ser humano alcança para manter uma aparência? Imagine poder provar que está certo sobre determinado acontecimento a partir de sua própria memória vista por outras pessoas. É por meio deste pressuposto que Mia Nolan (Andrea Riseborough) tenta encobrir os rastros de seus crimes.

A maior objeção sobre este episódio é a própria construção da protagonista, a qual mata quatro pessoas para manter sua vida nos eixos. Uma motivação consistente, mas questionável quanto seu prolongamento na história. Afinal, uma arquiteta com renome, que no passado apresentou características de uma pessoa justa, se mostra como uma serial killer instantânea após ter sua reputação e liberdade ameaçada.

A utilização de memórias pessoais na reconstrução de acidentes é a principal inovação apresentada. Apesar de parecer uma possibilidade distante, a apuração dos sentidos na recriação de momentos condiz com a capacidade humana de ligar cheiros ou sons a determinado ambiente.

Se apropriando de belos cenários e uma ótima atuação por parte de Andrea Riseborough e Kiran Sonia Sawar, Crocodile consegue manter uma trama de suspense durante a maior parte de seu tempo. O clímax e a grande descoberta por outra pessoa que Mia estaria envolvida em outros crimes porém, deixa a desejar. As soluções são facilmente pensadas e apresentadas pela protagonista, esquecendo a sensação de suspense e improbabilidade, a qual reaparece no final para confirmar o destino de Mia.


Nível de Paranóia: 6/10



Hang The DJ

Dirigido por Tim Van Patten, Hang The DJ é o episódio da temporada no qual a tecnologia não é sua principal discussão. Mesmo com a presença de um aplicativo de relacionamento altamente interativo com a realidade, as próprias relações humanas e sua vulnerabilidade são as principais temáticas em jogo.

Ao se apaixonarem e tentarem burlar o que seria uma união perfeita, Amy (Georgina Campbell) e Lenny (George Blagden) questionam não somente o programa que estão imersos como também os pressupostos que formam o casal perfeito. A trama não impõe o tom urgente que encontramos no restante da temporada, como se fosse uma grande pausa de reflexão no meio de suas narrativas.

Apesar desta diferença, o pensamento assim como o apreço técnicos são notados facilmente. A direção de arte cria um universo impessoal que transmite a sensação de superficialidade, assim como grande parte dos relacionamentos apresentados, o que precisa ser gradualmente desfeito nos momentos de interação entre Amy e Lenny. A direção de fotografia também merece seus méritos ao retratar os casais em planos abertos e distantes, sem focar em pequenas interações como um aperto de mãos, permitindo o espectador visualizar a reação de cada personagem neste momento.

Com um ritmo diferente e menos intenso, Hang The DJ consegue se destacar como uma surpresa na temporada ao debater um tema decorrente de forma mais profunda. Os diálogos e sequências corroboram para uma reflexão sobre a instabilidade do ser humano e de suas relações interpessoais.


Nível de Paranoia: 4/10



Metalhead

A primeira e principal observação sobre Metalhead é a ausência de cor adotada em seu visual. É raro encontrar séries e filmes que arriscam se aventurar no estilo e nostalgia noir com grande êxito, com ressalva para os mais “recentes” O Artista (2011) e “Frantz” (2016). O episódio em questão ao adotar este estilo pincela algumas referências dignas de nota.

A narrativa utilizada não é explicada de forma ampla, o contexto de urgência é notado devido aos diálogos iniciais e movimentos de câmera. Nada sobre este episódio é totalmente explicado ou passível de entendimento amplo, tudo que é dado para o espectador são informações soltas que se tornam afirmações por suposição.

A protagonista Bella (Maxine Peake) se encontra limitada em diálogos, com maior parte do tempo em cena atuando sozinha. Esta situação é a grande oportunidade para Maxine Peake oferecer uma ótima atuação e expressão corporal. Além disso, a referência estilística de closes no rosto da protagonista, os contrastes na fotografia e na trilha sonora marcante frente ao silêncio relembram clássicos Hitchcockianos.

Talvez o ponto mais fraco do episódio seja o próprio vilão, por assim dizer. O robô denominado como cachorro, lembrando características bem abstratas do animais, é uma ameaça que basta por si só, autossuficiente. Logo na sinopse do episódio, a grande solução para combater esta ameaça é fugir, o que reafirma o grande clímax de encontrar outras formas de sobreviver às investidas do robô. Porém este possui dificuldade ao levar momentos complexos da trama, se tornando até mesmo cômico em certas cenas. No mais, a trama apresenta mais uma forma de como a tecnologia é considerada uma ameaça, desta vez porém, de forma mais física do que virtual.


Nível de Paranoia: 8/10



Black Museum

Para finalizar a temporada, nada melhor do que um episódio que apresente referências e lembre outros momentos da série. Black Museum adiciona à esta proposta tramas secundárias com grande potencial, e uma história interessante, que infelizmente é contada por completo apenas em seu ato final.

Acompanhamos a jovem Nish (Letitia Wright) chegando ao Black Museum, um museu de vários artefatos com histórias intrigantes. Duas histórias são apresentadas para Nish e para o espectador, estas se assemelham muito com antigas narrativas de Black Mirror e particularmente acho que se tratavam de dois roteiros não utilizados na série. Ambas mostram as nuances de ter a tecnologia como uma possível aliada, porém são exploradas de forma rápida já que se tratam apenas de adendos na história principal.

Esta, por sua vez, apresenta certos problemas de desenvolvimento, parte disto devido a falta de conexão entre as outras histórias contadas e a trama central. A única ligação entre o episódio todo é a afirmação que o personagem Rolo Haynes (Douglas Hodge) não é totalmente confiável. Com essa exceção, o final apresentado possui as maiores soluções possíveis, onde a pane no sistema de ar foi milimetricamente planejada.

Apesar das dicas “sutis” durante o decorrer da trama, o final se torna um tanto quanto apressado e até mesmo com soluções fáceis. Mesmo em meio a estes problemas, o desfecho mostra relevância e introduz diferentes possibilidades sobre a tecnologia. Utilizar a morte e a possibilidade de dar continuidade a vida como força motriz para experimentos e aplicações é algo totalmente relacionável com o presente. Diferente de motivações rasas utilizadas na temporada, Black Museum adota incentivos primordiais ao ser humano: a morte e a família.

Tal qual uma montanha russa, a quarta temporada de Black Mirror consegue propor boas discussões assim como em seus anos anteriores. Problemas primordiais com roteiro porém, impedem que a experiência de seus episódios seja aproveitada de forma integral.


Nível de Paranoia: 9/10