ALERTA: este texto contém spoilers!

“Bloodine” começou seu tempo útil no serviço de streaming da Netflix como uma pequena e preciosa pérola, escondida num mar de produções próprias mais chamativas. O drama familiar apostou na fragmentação de sua narrativa na primeira temporada e desvelou lentamente os segredos dos Rayburn de forma a deixar o espectador intrigado a cada episódio. A família aparentemente perfeita, dona de uma pousada na Flórida, escondia segredos do passado que pareciam estar a espreita deles o tempo todo, e o andamento da série já apontava para a lenta agonia que seria a segunda temporada, quando o drama ganhou ares de thriller.

E aí veio a confirmação de que a terceira temporada de “Bloodline” seria a última – a justificativa seria a perda de facilidades para gravar na Flórida, o que aumentou brutalmente os custos. Tal como era de se imaginar, o ritmo vagaroso, porém hipnótico, da obra sofreu um baque ao suprimir em 10 episódios aquilo que Todd A. Kessler, Glenn Kessler e Daniel Zelman projetaram para um total de seis temporadas. A mudança deu a essa terceira temporada um andamento bastante irregular para o fechamento da obra.


Cadê a personagem que estava aqui?

Começando pelos pontos negativos, a temporada final deixou claro que a série não conseguiu desenvolver plenamente seus personagens femininos. Meg (Linda Cardellini) foi uma das primeiras Rayburn que conhecemos da série, e a dualidade que marca a personagem sempre rendeu momentos de grande potencial em “Bloodline”. Porém, o fechamento da história não permitiu que ela vivenciasse plenamente na telinha o ponto crucial que Meg atinge na terceira temporada a partir da – alerta de spoilers! – morte de um personagem ao qual ela foi ligada no passado.

O fato poderia adicionar ainda mais peso a uma personagem sempre à margem na “família de comercial de margarina” que os Rayburn tentam ser. Porém, a correria para encerrar a temporada dá mais espaço para John (Kyle Chandler), que confirma o merecimento de sua posição de protagonista principal, graças a sua atuação excelente como um homem cada vez mais à beira de um colapso. Nesse ínterim, Cardellini perde tempo de tela até praticamente desaparecer.

Não apenas ela, mas outras personagens femininas que poderiam ser ricamente exploradas no fechamento de “Bloodline” tomaram chá de sumiço nesses episódios. Diana (Jacinda Barrett) aparece só para sugerir um drama pessoal que nunca se desenvolve e a antes rebelde Jane (Taylor Rouviere) não tem absolutamente nenhuma função na trama. Outra que não vemos mais é Evangeline (Andrea Riseborough), ex de Danny (Ben Mendelsohn).

Esses problemas seriam secundários se o roteiro não prejudicasse tanto o ritmo dos episódios. Há por vezes muita pressa por avançar a trama ao ponto de evidenciar a degradação dos Rayburn, como vemos com o pulo de 5 meses que a história dá em dado momento. Em outros episódios, o ritmo mais lento que marca a série (e que, verdade seja dita, nunca foi problema antes) acaba estagnando o senso de urgência criado por episódios anteriores. Se foi emblemático acompanhar o desenrolar de John após o finale extasiante da segunda temporada, embarcar no anticlímax que abre a terceira até tem bem a cara da série, mas as quebras de ritmo lançadas ao longo de alguns dos episódios seguintes são decepcionantes.


Melhor sorte

Ainda sobre alguns personagens cruciais, com um destino menos ingrato ficaram o nefasto Ozzy Delvecchio (John Leguizamo) e Belle (Katie Finneran). O primeiro torna-se, de maneira um tanto inexplicável, uma espécie de voz da consciência dos personagens, mas isso acaba funcionando satisfatoriamente. O motivo é o fato de que “Bloodline” se desdobrou como uma série que apresenta nova faceta a cada temporada: começou como drama familiar (na primeira), evoluiu para thriller policial (na segunda) e ganha ares de loucura e/ou sobrenatural (na terceira).

Dessa forma, as visões que Ozzy diz ter caem como uma luva na espiral de culpa e pressões mentais da família Rayburn. O destino final do personagem é absurdamente abrupto, mas ao mesmo tempo, a cara de Ozzy em seu impacto e imprevisibilidade. Nesse sentido, a edição mais vertiginosa o favoreceu, minimizando os danos da correria para encerrar a série. De quebra, isso ajuda a situar o espectador no tom da temporada, o que de início é um mais pouco mais difícil que o normal para o padrão “Bloodline” de narrativa.

A segunda personagem citada, Belle, segue o exemplo das demais personagens femininas e não encontra muito espaço na trama. Porém, ela pelo menos apresenta uma mudança de status capaz de influenciar o andamento da trama de forma impactante até o episódio final. Assim, afasta-se da condição de flat character secundário que tinha até então, ganhando um arco próprio a partir do momento em que compartilha com o marido Kevin (Norbert Leo Butz) detalhes do que se esconde sobre os Rayburn.

No hall de figuras que poderiam render mais bons episódios, não fosse a correria para acabar a série, estão Roy Gilbert (Beau Bridges) e Nolan (Owen Teague). Mesmo com sua cara simpática, Bridges exala perigo a cada olhar, sendo a personificação da figura que, por baixo da fachada de “cidadão de bem”, tem intenções sórdidas e atitudes mais ainda. De maneira inteligente, os setores de figurino e maquiagem ganham destaque ao frisar as semelhanças entre Roy e John, como se o mais velho expressasse o potencial do mais jovem para ser bem sucedido no estratagema macabro em que se meteu.

Isso ressoa também em relação à segunda temporada, quando Nolan surge como espelho de Danny, ecoando a presença deste. Pena que, nessa terceira temporada, o jovem só ganha função no último episódio – uma função bem impactante, mas tardia se pararmos para pensar na desenvoltura de Teague no papel. Ao menos ainda temos a chance de ver mais do trabalho dele junto à Mendesohn em alguns trechos, com Teague interpretando Nolan e o jovem Danny às vezes numa mesma sequência.


Destaques

Para os fãs de “Bloodline”, sem dúvida um dos pontos altos da terceira temporada foi o maior espaço dado à Sally, interpretada com primor por Sissy Spacek. Todo o peso e ambigüidade que Cardellini não teve espaço para dar a sua Meg recaíram para Spacek, e a talentosa atriz aproveitou cada pico dramático do roteiro para brilhar como a matriarca dos Rayburn. Mesmo nos episódios mais fragmentados, que expressavam a confusão mental da personagem ao passo que nos confundiam também, ela consegue mostrar a ambivalência de uma mulher que é, ao mesmo tempo, manipuladora e protetora. A tensa recordação de seus partos, exposta quase em monólogo, é um dos melhores momentos da irregular temporada.

Outros dois momentos que podem constar no grupo dos melhores episódios de “Bloodline” são os referentes à resolução do julgamento de Eric O’Bannon (Jamie McShame) e ao trauma de John após um mergulho. O primeiro, coincidentemente, conta com uma montagem mais tradicional e serve de curioso contraponto ao segundo, que tem edição à la “Donnie Darko”, mas que adentra na mente de John em sua derrocada de culpa e esgotamento físico e mental. Esse episódio, decisivo para o season finale, pode ser considerado o que mais aproveita o ponto de vista íntimo de um personagem na série. Embora bastante diferente dos demais, funciona.

Com um final que não agradará a todos, “Bloodline” encerra sua existência deixando bem claro que não queria acabar. Até mesmo o corte brusco do take final parece dizer que a obra foi sufocada por pressões exteriores – o que, ironicamente, é a atmosfera na qual os Rayburn viveram e morreram. Só nos resta imaginar que outros erros eles cometeriam se tivessem tempo para isso.