Filmes devem servir como pontos de partida para discussões, então é importante se assistir a Boy Erased: Uma Verdade Anulada, mesmo que o filme em si seja… problemático. Sempre acreditei que se deve separar a “relevância social” de um filme – um conceito maleável, às vezes subjetivo e não necessariamente confiável – dos seus méritos como obra cinematográfica, já que as duas coisas nem sempre andam de mãos dadas, por mais que, às vezes, as cerimônias de premiação queiram nos convencer do contrário. O filme do diretor/roteirista/ator Joel Edgerton não chega a ser ruim, é só meio inerte. Mas se servir para iniciar discussão sobre o assunto e a situação que ele retrata – ambos bem relevantes, não só para a sociedade norte-americana, mas, para a brasileira também – então… bem, há destinos piores para uma obra cinematográfica.

Inspirado numa história real, Boy Erased conta a história do jovem Jared, vivido por Lucas Hedges, jovem ator revelado (e indicado ao Oscar) por Manchester à Beira-Mar (2016). Vindo de uma família cristã, ele acaba sendo enviado pelo pai para uma terapia religiosa de “reeducação sexual” após admitir ter atração por homens – em termos leigos, ele é mandado para a conhecida “cura gay”, uma prática estabelecida nos Estados Unidos e permitida em vários Estados. Lá, ele descobre outros jovens com o mesmo problema, quase todos homens – embora haja uma garota, infelizmente, pouco explorada – e, com o tempo, ele passa a questionar a “terapia” e a verdadeira lavagem cerebral que ela tenta promover. Afinal, um dos “mantras” do lugar é “finja até conseguir” (fake-it till you make-it, em inglês), ou seja, os jovens são estimulados a “bancar os machos” até esse comportamento ser assimilado de maneira inconsciente.

Várias cenas mostram essa tentativa de racionalizar e aplicar princípios “científicos” para tentar consertar ou mudar a natureza humana – o que nunca deu nem nunca dará certo. Percebe-se que Edgerton fez a sua pesquisa aqui – ele também atua no filme como o instrutor Sykes, e o “Boy Erased” revela de modo irônico o destino desse personagem num letreiro ao final. E Edgerton já demonstrou ser, além de bom ator, um bom diretor também – ele comandou o ótimo suspense O Presente (2015) há alguns anos. Mas, aqui, realiza um trabalho decepcionante.

Decepciona no roteiro, com personagens e situações indefinidas e mal exploradas – a mãe de Jared, vivida por Nicole Kidman, vai e vem na narrativa e, de repente, ajuda o filho sem contexto para tal. E o conflito do protagonista com o pai não é resolvido: é simplesmente abandonado. E ele também decepciona na direção: algumas cenas nas sessões de terapia parecem improvisações de escolinha de teatro, sensação reforçada pelo fato de Edgerton filmá-las, às vezes, com uma câmera fixa, como o proscênio teatral.

Até nas atuações, Boy Erased não tem nada de especial. Nicole Kidman e Russell Crowe, como os pais de Jared, estão bem, dentro dos seus personagens limitados – mas são Kidman e Crowe, certo? Já se espera que estejam bem em tudo. Lucas Hedges passa o filme inteiro com a mesma cara, mas isso se deve mais à forma como seu personagem foi escrito do que propriamente o ator. Jared é um personagem bem passivo e definido apenas pela sexualidade, chegando a ser raso de fato e, até em momentos de conflito ou quando se mostra interessado sexualmente por alguém, parece meio sedado. Como protagonista, ele nunca envolve, e isso contribui muito para que o filme seja tão emocionalmente inerte. Já os outros jovens do grupo da terapia dele são terrivelmente subutilizados: nenhum deles chega a demonstrar uma personalidade ou individualidade que poderia enriquecer a história.

Boy Erased não é realmente ruim: apenas deixa transparecer que foi feito com a “relevância social” em primeiro lugar e os aspectos cinematográficos em segundo plano. Nesse sentido, o filme encontra méritos: a situação mostrada nele causa indignação em qualquer pessoa com um mínimo de inteligência, e o filme é eficaz em expor o preconceito sexual, o medo e a intolerância religiosa que vêm se fortalecendo mundo afora. Curiosamente, a organização Love in Action retratada no filme, que promove a tal “cura gay”, tem como sigla LIA, que parece um pouco com a palavra “lie” em inglês. “Lie” significa mentira, e Boy Erased extrai sua força, em alguns momentos, do ato bastante humano de mentir para si mesmo e contestar em vão a própria natureza.

Filmes com relevância social podem, sim, ajudar a provocar mudanças, ao menos em nível micro, então Boy Erased pode ajudar algum espectador em algum lugar a parar de mentir, especialmente para si mesmo. Há valor nisso, até mesmo em obras com méritos modestos.