A moral cristã e os misteriosos propósitos de Deus podem caber na experiência efêmera e enjoativa de um pacote de jujubas? Para as mais de dez milhões de pessoas que compraram o romance A Cabana, de William P. Young, e os prováveis rios de espectadores que devem acorrer para este filme, não há dúvida. O lamentável é que, para quem realmente espera um mínimo de densidade, de estrutura, de ideias – de inteligência, afinal – de um filme, este aqui não oferece nenhuma. E meditações sérias e sublimes como Silêncio, de Martin Scorsese, que não reduzem as indagações da fé a uma mistura de bom-mocismo estéril, ingenuidade e sutil mas forte sectarismo, passam em brancas nuvens nas salas mais corajosas.

Continuando uma linhagem de filmes de propaganda cristã, que tentam adoçar os dogmas da fé com platitudes de autoajuda e uma visão espantosamente cor-de-rosa e simplificadora do mundo, como Beleza Oculta, desse ano, ou os ainda mais débeis Deus Não Está Morto (2014) e Quarto de Guerra (2015), A Cabana não é um filme sobre trama, atuações, direção ou qualquer coisa que fique no caminho da mensagem: a reafirmação da fé, para quem já crê, ou a tentativa de oferecer argumentos que legitimem o pensamento religioso da obra, para atrair – ou derrotar – os incréus.

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E que argumentos são esses? Mack Phillips (Sam Worthington, de Avatar e Fúria de Titãs) era um chefe de família de comercial de margarina, um trabalhador honesto, marido amoroso e pai carinhoso, com um xodó especial pela caçula, Missy (Amelie Eve). Apesar dos traumas sofridos junto ao pai abusivo – o início do filme sugere que Mack teve de matar o homem, embora nada mais seja dito sobre isso na trama, exceto por um reencontro bombástico e vago no final –, ele conseguiu se tornar uma pessoa feliz e realizada, frequentador leal da igreja e figura respeitada em seu subúrbio branco e louro. Até que, um dia, durante um incidente numa pescaria com os filhos, Missy é sequestrada e desaparece. O mundo de Mack cai (curiosamente, apesar da história mais pungente ser a da filha mais velha, Kate [Megan Charpentier, de Resident Evil 5: Retribuição], que se culpa pela morte de Missy, o filme continua a se ocupar dele). Eis que, um dia, chega uma carta de “Papai” – o apelido particular de Missy para Deus – convidando Mack a voltar à cabana onde o vestido e sangue da menina foram encontrados pela polícia. É a senha para o protagonista ser acolhido em pessoa por Deus, ou Papai (Octavia Spencer, de Histórias Cruzadas [2011], com o carisma e a eficiência de sempre, fazendo uma versão feminina do Senhor vivido por Morgan Freeman em Todo Poderoso [2003]), Jesus (o ator israelense Aviv Alush) e o Espírito Santo, aqui uma mulher chamada Sarayu (a atriz e cantora japonesa Sumire), numa versão bonitinha e politicamente correta das figuras centrais do cristianismo. Durante três dias, eles irão ensinar Mack a se reconciliar com dores passadas e a reatar seus laços com Deus, que, segundo o filme, gosta de Neil Young, é dado a frases de autoajuda e age sobre o destino dele, mas não sobre o de Missy.

Sem entrar em maiores discussões sobre os méritos teológicos do filme, que foi bastante criticado por setores tanto do catolicismo quanto de igrejas evangélicas, por sua versão shopping center, anódina e asséptica, da moral cristã, A Cabana é uma história no mínimo confusa. Sarayu só aparece para colher lágrimas que irrigam jardins (também não entendi, mas a visão das flores computadorizadas fez sucesso na sessão lotada onde fui). Jesus faz brincadeiras usando seus poderes (decidindo quando Mack pode ou não andar sobre as águas) e é mera escada para momentos de maior voltagem. Deus-Papai (e a ideia de uma mulher negra não atenua o patriarcalismo da coisa) prepara um doce milagroso e culpa o Mal pela morte de Missy. É Sophia, ou o Conhecimento (Alice Braga, aproveitando um projeto de grande visibilidade), quem coloca as cartas na mesa, num julgamento onde Mack aprende que o psicopata que matou sua filha é tão humano e sujeito ao mal quanto qualquer um de nós – para concluir, mais adiante, que, enquanto houver pessoas capazes de rejeitar Deus, o mal existirá. A ausência de Deus, portanto, é a ausência do bem – é preciso expulsar o ateu mais próximo para o bem prosperar.

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Mas, afinal, essas ruminações não devem significar nada para a multidão de fãs de A Cabana. Estamos no terreno da fé, da crença numa força transcendente, impalpável e incompreensível por nosso pobre intelecto humano. Trata-se, enfim, de abraçar ou não a versão cosmética e excessivamente açucarada de William P. Young para o cristianismo. Mas mesmo entre os fãs incondicionais do livro ou desse filme, fica o apelo para buscarem o recém-lançado (em DVD e Blu-ray) Silêncio, citado lá em cima. Tudo o que um filme pode dizer sobre a fé cristã – e sobre o sentimento religioso, em qualquer denominação – está lá.