A década de 50 é considerada, por muitos, a época de ouro do cinema: Tínhamos Hitchcock, Kurosawa/Ozu e Ingmar Bergman despontando na Europa; Marilyn Monroe, Audrey Hepburn e Bridget Bardot como as novas musas cinematográficas; o cinema musical se revigorava com o fenomenal Cantando na Chuva e o movimento da Nouvelle Vague apresentava sua revolução cinematográfica. Sem contar os filmes épicos e espetaculares que se popularizaram nesta década, graças ao uso da técnica de filmagem em widescreen por Hollywood.

Neste período, a “magia do cinema” serviu de válvula de escape para a fuga da realidade das guerras e dos conflitos sociais travados pelas grandes potências na década passada. O cinema hollywoodiano propagava o american way of life para lotar suas salas de cinema. Na contramão deste “cinema esperançoso”, o ainda jovem Samuel Fuller em apenas no seu terceiro trabalho, traçava um clima desolador e sufocante sobre a realidade da guerra, que praticamente deixava exposta as feridas e vísceras do american way of life e que toda esta experiência, não passava de uma grande bobagem.

O petardo cinematográfico é Capacete de Aço, uma belíssima obra anti-bélica, uma das primeiras a tratar de forma analítica a Guerra da Coréia. Para quem não conhece sua história de vida, Fuller foi jornalista e esteve no front principal da guerra, cobrindo por três anos, o evento, testemunhando de perto a morte e a violência bélica. Por isso, aprendeu a ver a realidade sem grandes ilusões ou fantasias, enxergando o mundo como brutal e fatalista.

Em Capacete acompanhamos o sargento durão Zack (Gene Evans, excelente no papel), único sobrevivente da sua companhia, depois que a mesma foi exterminada pelos inimigos e o sargento salvou-se de um tiro, graças ao capacete de aço – o título do filme e objeto em questão, ganham pelas mãos e texto de Fuller, um grande leque de ressignificações de representações durante o seu desenrolar. Ele é solto por um garoto sul-coreano, Short Round e ambos se unem a um grupo de soldados norte-americanos (cada um com sua própria particularidade) que irão se abrigar em um templo budista para enfrentarem um exército comunista.

Por ser realizado numa época em que o cinema procurava proporcionar esperança ao público, Capacete de Aço é contundente por ser um filme pesadíssimo, tenso e torto, que reproduz, muito bem, o campo de batalha da guerra de fato como ela é: sem heroísmo ou patriotismo, apenas o puro instinto de sobrevivência dentro de um campo sórdido e destrutivo. Isso é um dos diferenciais do filme, até porque nesta época, o cinema de gênero, no qual os filmes de guerra se estruturavam, valiam-se de atos e comportamentos patriotas para dar um tratamento apoteótico ao evento bélico.

Fuller na contramão do endeusamento, procura contar sua história de Capacete por meio de uma visão mais rica e abrangente. Aqui há, uma preocupação maior de retratar os comportamentos dos soldados, de estudá-los e questioná-los frente à uma realidade de loucura e insanidade. O significado do ser humano dentro da guerra é o mais importante para o cineasta, afinal o próprio evento em si, é formado por uma violência incontornável que leva o grupo de soldados do filme, assimilarem a natureza corrupta, cruel e suja do meio, vítimas de abuso físico e emocional. Cabe os soldados “marginalizados” – nos filmes de Sam, os protagonistas são praticamente verdadeiros anti-heróis – dotados de um caráter vulnerável e falho, compreender o significado perdido de humanidade frente a um sistema social intolerante, racista e que nunca aprende com seus erros.

Neste aspecto, há um elemento forte no filme, que é característico dos filmes do diretor: de contrariar os consensos de gêneros, personagens e narrativas. Fuller pega pesado nas temáticas, porém, é sempre transparente naquilo que oferece ao espectador. Capacete é uma obra que fala sobre a guerra, só que valoriza os dramas emocionais, os estudos de personagens, as críticas sociais sobre as relações humanas, as análises ideológicas, entre outros temas. Para Fuller, o “como” contar essa história é mais importante que o “que” leva a isso. Ele nos faz acreditar que está fazendo uma denúncia da guerra, quando na verdade a questão é mais ampla, por apresentar os arquétipos sociais americano. A questão da guerra rege a couraça física externa do filme, internamente é um filme que dialoga com diferente gêneros e emoções.

Isso é observado, em certas passagens do filme como a do garoto órfão (Short Round) que busca uma figura paternal no sargento Zack, servindo a sua inocência como choque para a moral do sargento e o contraponto da truculência bélica; os diálogos sobre os efeitos da guerra pela tropa militar evidenciam a “moral” negra do capitalismo e do sonho americano; a fala entre o soldado norte-coreano com o médico negro expõe a crítica ferina do racismo americano; os simbolismos relacionados ao capacete do título, é ressignificado como o último resquício de humanidade da pessoa na guerra, a metáfora do estigma da materialidade da violência,  do homem devorando seus próprios semelhante com seu armamento bélico (a entidade fantasmagórica) e o capacete marcado com uma bala que sinaliza o sobrevivente como um fantasma, alguém que deveria estar morto e não vivo – ou seria ele, um morto-vivo?

São estas alegorias que alimentam Capacete de Aço, principalmente o cinema de Fuller, que chamamos das contradições, afinal é estranho você encontrar uma criança, um médico negro e um sargento nipo-americano como protagonistas de uma história de guerra; um templo budista que devido o sistema ideológico que não respeita tradições, funciona como cenário burlesco de um campo de batalha e um adversário coreano franzino fisicamente, contudo emocionalmente forte com um discurso sedutor e provocativo frente ao seu adversário.

Tudo isso representa na percepção do seu autor e do próprio filme, os EUA como uma grande mentira. É através da guerra que Fuller deixa claro as contradições da América, um país estranho e incoerente em tratar seus semelhantes. Capacete neste intuito, desmascara e despe mitos da América através da diversidade étnica e dos conceitos de tolerâncias e respeito dentro de um filme de guerra realista, sujo, feio, humano e fatalista. Todo esse contexto narrativo é alinhado a fotografia acinzenta e claustrofóbica, juntamente com o belíssimo trabalho de enquadramentos da mise-en-scéne fulleriana com closes nos rostos dos soldados e profundidades de campo e espaço para ampliar o cinema de guerrilha que praticamente aprisiona o espectador naquela situação.

Filmado em apenas 10 dias, com um orçamento financeiro merreca de 10.000 dólares e sem grandes atores, faz de  Capacete de Aço um filme assombroso, o cinema B consciente no seu teor anti-belicista que expressa os anseios fatalistas que a american way of life tentava colocar para debaixo do tapete. Ele desconstrói o idealismo heroico típico do cinema americano. Em seu terceiro filme, Samuel Fuller mostrava a força da natureza do seu cinema, apenas com seu olhar crítico e diálogos inesquecíveis “Existem dois tipos de homens nesta praia. Aqueles que estão mortos e aqueles que estão prestes a morrer. Portanto, vamos sair da praia e morrer no interior”. Este tipo de cinema crítico e virtuoso, de costurar magnificamente diversos gêneros, sem dúvida, faz uma falta danada como força na arte underground do cinema atual. Poucos sabiam, tão bem, utilizar intimamente a arte em favor das emoções como Sam.