Quando o escritor Stephen King lançou seu primeiro livro, Carrie, a Estranha, em 1974, a obra fez sucesso em grande parte pelo seu aspecto catártico. Era a história de uma menina desprezada e maltratada pelos seus colegas de escola. Porém, devido ao aspecto fantástico da narrativa, ela recebia a oportunidade de se vingar quando desenvolvia poderes psíquicos. Para apimentar a narrativa, King fazia Carrie, sua protagonista, descobrir seus poderes junto com a sua primeira menstruação – um interessante paralelo com o poder adquirido no momento no qual uma menina se torna mulher.

Mas no fim das contas, é uma história sobre bullying, essa palavrinha tão na moda hoje, misturado com um pouco de pseudociência sobre a telecinese (a capacidade de mover objetos com a força da mente) e aquele toque inconfundível de King para fisgar o leitor. Carrie virou filme em 1976, dirigido por um Brian De Palma inspiradíssimo – o diretor não suavizou nem escondeu nenhum dos temas da narrativa de King, e criou um dos momentos mais memoráveis da história do terror quando a protagonista (vivida por Sissy Spacek) se vingava dos seus colegas no baile de formatura.

Agora surge uma nova versão, bem próxima ao filme de De Palma. Em alguns momentos até os mesmos diálogos são usados – tanto que o roteirista do original, Lawrence D. Cohen, é creditado junto com o novo, Roberto Aguirre-Sacasa. O novo Carrie é dirigido por Kimberly Peirce, acostumada a abordar a juventude em seus trabalhos, e que num passado já meio remoto dirigiu o impactante drama Meninos Não Choram (1999), que rendeu o Oscar de Melhor Atriz a Hilary Swank.

O começo, no entanto, é um pouco diferente: a história abre com uma cena dispensável, mostrando a mãe de Carrie, a fanática religiosa Margaret White (interpretada por Julianne Moore), dando à luz sozinha em casa – essa cena está no livro, mas não no filme de 1976, e no fim das contas acaba não tendo muita razão para existir. Anos depois, Carrie (Chloë Grace-Moretz) é vista já adolescente e jogando vôlei aquático com suas colegas de turma na piscina. Por um momento, surge a impressão que esse remake será subversivo e potencialmente traumatizante – será que a menstruação de Carrie ocorrerá na piscina? Mas aí a cena progride… e aquela impressão se desfaz, quando Peirce recria a cena no vestiário feminino tornada famosa por De Palma. Porém, sem nenhuma nudez e sem aquele tom ao mesmo tempo lírico e perturbador – quanto tempo faz que esses últimos elementos não aparecem num filme de terror de grande estúdio?

Carrie menstrua e nem ao menos sabe o que é isso, deixando todas as demais meninas perturbadas. Elas a humilham, jogando absorventes sobre a coitada, e acabam sendo punidas pela direção da escola. Uma das garotas, Chris Hargensen (Portia Doubleday), não aceita a punição e resolve pregar a maior de todas as humilhações em Carrie, na noite do baile – alguma coisa, de novo, a ver com sangue. Mas até lá a garota deslocada já terá dominado seus poderes telecinéticos…

Stephen King dizia que a sua história era muito “anos 1970”, e isso já há vinte anos. Os cineastas por trás do novo Carrie tentam atualizar a história, incluindo a subtrama do vídeo na internet – Chris posta na web o vídeo da Carrie no vestiário – mas outros detalhes da trama que pareciam mais aceitáveis nos anos 1970 hoje parecem estranhos, especialmente o fato da protagonista não saber o que é menstruação. A Carrie é vista usando computador e mecanismos de busca – de forma desajeitada, mas mesmo assim – e parece mais inteligente que a sua versão passada. Por isso mesmo esse desenvolvimento da trama parece ainda mais estranho.

A aura macabra do original também é substituída pelo que há de “moderno” no cinema de hoje: efeitos visuais. Aparentemente, esta foi a principal razão para refilmar Carrie, mostrar a contento a destruição causada pela protagonista. Mesmo assim, essa destruição não é tão ampla como poderia ser – fãs do livro, ansiosos para ver Carrie devastando a cidade como acontece na história, deverão ficar desapontados. E a computação gráfica é bem medíocre em alguns momentos, como na cena da reconstrução do espelho, por exemplo.

Quanto ao elenco, os jovens que vivem os personagens coadjuvantes se formaram na escola Malhação de atuação: são todos bonitos, genéricos e inexpressivos. Devido às atuações apáticas, não sentimos nem o ódio de Chris nem a culpa de Sue (Gabriella Wilde). Julianne Moore e Chloë Grace-Moretz atuam com determinação, e a primeira até consegue adotar certa sobriedade ao interpretar a Sra. White. Mas Chloë, apesar do seu talento, não funciona: ela é simpática demais, nunca parece “estranha” de fato e não consegue, junto com o roteiro, mostrar as diversas facetas da personagem. Diferente da Sissy Spacek, que realmente parecia ter vindo de outro mundo e se modificava ao longo da história, esta nova Carrie permanece a mesma, esteja usando suas roupas de escola ou o vestido da festa. E no final, se transforma numa super-heroína, punindo apenas os maus e deixando os bons viverem.

Isso demonstra que a diretora e seu roteirista aparentemente não compreenderam o material. A Carrie do livro e do filme de De Palma é ao mesmo tempo vítima e algoz. Ela se vinga propositadamente dos seus colegas de escola – e o leitor e o espectador se vingam junto com ela porque, afinal, muitos de nós sabem o que é ser oprimido de alguma forma nessa época da vida. Mas a vingança dela é indiscriminada e precisa ser assim, para nos chocar: Carrie mata tanto quem a humilhou quanto quem não tinha nada a ver com seus anos traumáticos no colégio. Seu poder é incontrolável e não discrimina. Por isso é imperdoável quando a vemos salvando alguns personagens no terço final da história.

Quando Stephen King escreveu Carrie, a catarse do livro era a única possível, pois os nerds e humilhados não se vingavam. Mesmo assim, ele mostrava como essa violência podia ter consequências imprevisíveis através dos metafóricos poderes da protagonista. Hoje, no entanto, os oprimidos se vingam, compram armas e promovem massacres nas escolas em diversos lugares do mundo. Ao fazer com que Carrie puna apenas os maus, Kimberly Peirce se nega a aceitar a triste realidade do fenômeno do bullying, a de que a violência é sem sentido e despropositada dos dois lados, tanto do agressor quanto do agredido que se vinga. Ela faz da vingança de Carrie “justificável”, nos faz vibrar com ela e a torna uma “heroína”. Em suma, perde mais uma oportunidade para tornar seu filme perturbador e relevante. Como está, é apenas mais um remake ruim de terror, com uma mensagem bastante questionável.

Mas, na verdade, esse é o efeito que a obra deixa ao seu final. O filme morre bem antes disso, quando a diretora mostra o banho de sangue da Carrie no baile, um dos mais icônicos e terríveis momentos da história do gênero terror, como se fosse uma “videocassetada”, com direito a verdadeiros replays que deixam a cena engraçada. Ao presenciar esse momento, qualquer esperança que o espectador ainda pudesse ter em relação a este remake é incendiada e eletrocutada junto com os jovens do baile.

Pôster de Carrie - A Estranha (2013)