Com tantas perdas inestimáveis no mundo artístico em 2016, esse foi um ano especialmente difícil de não se envolver emocionalmente na comoção midiática gerada pelas mortes de figuras como a atriz Carrie Fisher, que faleceu nesta terça-feira (27) aos 60 anos. Impossível dissociá-la de seu papel mais marcante, a princesa Leia da saga Star Wars, mas já há muitos textos delineando sua filmografia em linhas gerais nessa altura do campeonato.

Por isso, a discussão aqui é outra; é sobre o que podemos carregar dessa pauta em longo prazo. O que uma figura como Carrie tem a nos dizer para além das lamentações genuínas de tantos e da empolgação passageira de alguns? Por que se importar?

O que ela é e o que significa para você

Em primeiro lugar, é mandatório pontuar que a personagem da Princesa Leia não é icônico unicamente por pertencer a uma franquia blockbuster que lucra bilhões de dólares desde o final dos anos 1970. Colocando o papel em perspectiva, o trabalho de Carrie (e a franquia como um todo) resistiu ao teste do tempo por conta de elementos que subverteram a ordem “natural” da representação daquele tipo de narrativa de aventura, a qual o teórico Joseph Campbell chamou de “jornada do herói”.

No caso de Carrie/Leia, a representação da donzela em perigo foi reconfigurada e complexificada, ao passo que sua apresentação permaneceu tão “pipoca” quanto o gênero cinematográfico de aventura/space opera pedia. Logo, a princesa, figura que tradicionalmente ajudaria o herói (Luke) em seu ímpeto à aventura (a guerra nas estrelas em si) ou serviria como recompensa (ser um par romântico, por exemplo) na jornada masculina do herói, é apresentada como muito mais que isso. Leia representa, então, uma força por si só: é uma princesa, mas insere-se com cada vez mais determinação no universo bélico, assume papel de liderança, revela-se irmã (e não amante) do herói e traz consigo um poder (a Força) que a coloca em pé de igualdade quanto ao seu potencial heroico.

Com tantos atributos ligados a um poder sobre o próprio destino, algo raro no campo de papeis que uma mulher poderia interpretar num filme de aventura blockbuster, um clichê possível seria uma masculinização da personagem de Leia. Porém, o que vemos é justamente o contrário: os atributos “masculinos” (liderança, força, voz ativa) casam de forma natural com aqueles socialmente definidos como “femininos” (sensibilidade, cuidado do outro, expressão de emoções). São pouquíssimas as mulheres da trilogia original de Star Wars com alguma função relevante ou mesmo falas, mas graças a Leia, várias gerações de meninas/moças/mulheres como eu ganharam alguém em quem se espelhar pelo tempo de duração de uma sessão de cinema, estejam elas definidas por noções de masculino e feminino ou algo entre os dois extremos.

Carrie dominou a dualidade dessa personagem assim como dominou os diálogos por vezes absurdos que só fazem sentido no universo Star Wars e se empenhou para além capacidade limitada de George Lucas na direção (ele dirigiu “Uma nova esperança” antes de passar o bastão). Mais que isso, ela deu ainda um verniz de humanidade à princesa quando usou o seu talento cômico à serviço da personalidade forte de Leia, interpretando as cenas de alívio cômico com a mesma maestria que o carismático Harrison Ford.

Quando ela ressurgiu no Episódio VII, Carrie novamente prestou um serviço que nós, espectadores, podemos não ter nos dado conta logo de cara: ela surgiu velha, como a senhora de 60 anos que era. Em entrevistas, ela citou como perdeu peso para o papel por conta de pressões (veladas ou não) para aparentar estar o mais “inteira” possível, num paralelo à pressão para perder peso que sofreu nos anos 1980 para aparecer com o hoje infame biquíni de metal em “O retorno de Jedi” (1983). Ainda assim, a idade estampou-se inevitavelmente em seu rosto, mas ninguém se importou porque todos queriam saber o que tinha acontecido com a princesa. A resposta foi ainda mais importante: ela se tornou uma general, ela não sucumbiu ao lado negro mesmo sendo tão poderosa quando o irmão Luke e sim, ela viveu um grande amor, embora não tenha dado tão certo. Surgiu na tela uma personagem, mulher, “imperfeita” em suas formas, dizendo a diversas gerações de espectadoras que existe vida após o “…e viveram felizes para sempre”!

Lembro de ouvir que alguns poucos fãs reclamaram que a dinâmica entre Leia-Han não foi tão divertida no Episódio VII. Eles não se atacavam como cão e gato, tal como na trilogia original, quando eram jovens e não sabiam como se endereçar ao outro e expressar seus sentimentos. Que bobagem, né? A princesa e o contrabandista cresceram, foi só isso que aconteceu, e Carrie novamente soube dar o tom correto à personagem em sua evolução. Rimos com sua menção à “jaqueta velha” de Han Solo, ficamos atentos ao vê-la comandando os homens da Resistência e choramos quando ela sentiu pela Força a morte do companheiro. Carrie sabia o que estava fazendo com a personagem, pra variar, e nós, mulheres, nos reencontramos com alguém em quem podíamos nos ver dentro daquela janela de fantasia.

Como espectadora, o trabalho de Carrie com a personagem é algo que ressoa não apenas no universo cinéfilo, mas também politicamente. Filmes carregam sonhos, e nós mulheres queremos participar da brincadeira tanto quanto os meninos desejam ser jedis como Luke Skywalker ou truqueiros charmosos como Han Solo. Carrie personificou isso para muitas mulheres através de seu trabalho em Star Wars: o direito de se ver em algo e de sonhar com feitos pessoais para além das expectativas ditadas socialmente ao nosso sexo. Até mesmo quando tentaram sexualizar o papel de Leia, Carrie deu sua própria releitura: trata-se do momento em que a personagem mata seu raptor, o monstro Jaba the Hutt (aquele que a acorrentou e obrigou a usar o tal biquíni metálico no Episódio VI). A atriz já afirmou que fez questão de não usar um dublê na cena, pois queria ela mesma “matar” o monstro que fez com que ela tivesse que perder peso, usar aquela roupa desconfortável e estar em cenas nas quais ela praticamente não tinha falas.

Exposição, tristezas e risadas

Os papeis de Carrie no cinema jamais atingiram a projeção de Leia e Star Wars, o que eclipsou o talento da atriz em muitos momentos. Ainda assim, ela permaneceu extremamente relevante como figura pública, utilizando em muitos momentos a fama, sua e de sua família, para alavancar discussões pertinentes. Numa época pré-internet, a atriz falou abertamente sobre o vício em drogas, a depressão e seu diagnóstico de transtorno bipolar, além de descrever várias situações de sua vida atribulada em livros autobiográficos. Se hoje qualquer um pode “se dar ao luxo” da autoexposição, sendo esta uma ferramenta cirurgicamente utilizada por várias celebridades (Taylor Swift, é de você mesma que estou falando), nas décadas de 1980-1990 se abrir ao mundo da maneira que Carrie fez não era tão comum assim, e teve uma importância bem maior.

Longe de abordar apenas as amenidades ou “causos” de sua vida extraordinária como estrela-filha-de-estrelas-do-entretenimento, Carrie expôs-se ao mundo ao falar de seus defeitos, sempre com muito bom humor em sua constante autocrítica. Enquanto “celebridade”, ela dividiu muito de suas imperfeições, virando o espelho para o seu público e permitindo que ele pudesse, novamente, ver-se nela, o que foi especialmente importante quando ela abordou questões de saúde mental numa época em que famosos raramente falavam sobre o assunto tabu. Carrie nasceu, viveu e morreu no Star System de uma indústria de entretenimento, criticando-o muitas vezes. Ao mesmo tempo, usou essa máquina a favor de alguém mais além dela mesma outras incontáveis vezes.

Nas telas do cinema, Carrie apareceu ainda em algumas divertidas comédias da década de 1980, como “os irmãos Cara de Pau” (1980), “Meus vizinhos são um terror” (1989) e “Harry e Sally: feitos um para o outro” (1989). Neste último, aliás, ela interpreta Marie, uma das melhores amigas da protagonista-título (Meg Ryan, nos seus bons tempos de comédias românticas), um papel tanto engraçado quanto super realista na representação de uma mulher nos trinta-e-poucos anos, muito bem direcionado à Carrie.

Também é digna de nota a ponta de Carrie em “Hannah e suas irmãs” (1986), um dos bons dramas de Woody Allen. Embora num papel menor, ela encontra já ali uma janela para cutucar a implacável máquina da indústria do entretenimento ao interpretar April, atriz que divide seu tempo entre testes de elenco e o “bico” como cozinheira de comida de coquetéis finos. Os anos posteriores no cinema foram marcados por participações com gostinho de homenagem em séries como “The Big bang Theory” ou em filmes como o “O império do besteirol contra-ataca” (2001), do aficionado em Star Wars Kevin Smith. Escasseiam-se os bons papeis para o que a indústria considera aceitável para sua idade, mas Carrie continua escrevendo, lançando-se aos palcos e atuando nas frentes que apoiou durante a vida.

A atriz trouxe um insight cômico, ácido e crítico ao universo do entretenimento. Ainda que venha a ser lembrada quase que unicamente por apenas um papel, seu talento ao interpretar a icônica princesa e sua sagacidade em saber como expor o turbilhão do show bussiness e seus efeitos, usando o buzz para além do mero divertimento, marca em longo prazo a vida de várias mulheres: as fãs de Leia Organa, as cinéfilas como eu e as artistas do ramo que tiveram estigmas da profissão enfrentados e postos em discussão graças à contribuição de Carrie. Por essas e outras, Fisher ressoará por muito mais tempo que a listagem dos trending topics, que colocam o nome da atriz no topo dos assuntos mais comentados desse final de 2016, sugere.