Hoje, nós chegamos ao final da série do Cine Set que revisita as representações gays de destaque no cinema com as aparições desses personagens no cinema nacional. Você pode conferir a parte que trata do cinema dos EUA aqui e a que analisa o cinema da Europa, Ásia e Oceania aqui.

cinema gay
Os primórdios

No Brasil, como nos EUA, as primeiras aparições de homossexuais no cinema serviam a fins humorísticos, explorando a capacidade da afetação e a geral inadequação desses indivíduos de fazer rir. As comédias das produtoras Cinédia e Atlântida foram marcadas por situações em que o travestismo e a confusão entre gêneros pautavam-se no riso.

Um exemplo disso é “Carnaval Atlântida” (1952), que apresenta o célebre comediante Oscarito como um professor de história antiga muito afetado. Sua personagem é, em essência, um dândi, sempre muito bem vestido, despejando erudição e bons modos. Ele também é mantido pelo roteiro como um ser largamente assexuado e nega constantemente as afeições físicas de uma mulher atraída por ele.

O lançamento de “O Menino e o Vento” (1966) seria um marco para a representação do homossexual no cinema nacional. O longa mostra personagens homossexuais desprovidas de qualquer trejeito ou afetação e, ao mesmo tempo em que coloca a sexualidade deles no centro da trama, aproveita para tecer um comentário humanista em seu favor, criticando seu julgamento pela sociedade através de um julgamento real, vivido pelo protagonista, o gay José Roberto (Ênio Gonçalves).

Com um estilo poético que funciona em uma lógica um tanto quanto onírica, o diretor Carlos Hugo Christensen trabalha bem e largamente com metáforas, criando um conto sobre a falência da moralidade e sobre a pureza de um amor cujo entendimento os próprios envolvidos não conseguem obter.

Cena de A Rainha Diaba
Os insanos anos 70

“Navalha na Carne” (1970), adaptação da peça homônima de Plínio Marcos, não vai tão a fundo na discussão da homossexualidade, apesar de uma de suas três personagens ser gay. Esta, um faxineiro chamado Veludo, simplesmente existe em um ambiente hostil e abjeto e, assim como os heterossexuais, não funciona dentro de padrões morais vigentes, sendo uma figura trágica, como os demais.

O mesmo tom trágico assombra “A Casa Assassinada” (1970), em que o gay abusa de gestos espalhafatosos e teatrais e é tido como louco pelos familiares por se vestir com as roupas de sua avó e por não esconder suas “tendências”, afrontando os valores impostos. A metáfora do tratamento da sociedade, em especial da família pequeno-burguesa tradicional da época, em relação ao homossexual, é explícita no filme.

Mais transgressor foi “A Rainha Diaba” (1974), que ousou contar a história de um traficante gay e negro no auge da ditadura militar brasileira. Milton Gonçalves encontra um meio-termo incrível para sua caracterização do protagonista, alternando livremente entre a afetação gay e afeminada e a rispidez e violência tipicamente masculinas quando necessário. Aqui, o gay exerce uma posição de poder, ainda que clandestino, durante quase todo o tempo de projeção – milhas distante dos gays subjugados pelo mundo externo vistos no cinema nacional até agora.

“A Morte Transparente” (1978), na contramão, se mostrou, além de um filme um tanto quanto datado e limitado, uma prova de que não necessariamente uma caracterização heteronormativa e de classe média de um homossexual corresponde a um retrato fílmico positivo.

Ramiro (Fernando de Almeida) é um gay que parece existir somente para sê-lo, apenas existindo em cenas e situações que lembrem essa característica. Ele paga para manter o protagonista Beto (Wagner Montes), reforçando o estereótipo de que homossexuais precisam pagar para ter relações, e mesmo assim é constantemente rechaçado por este. Além disso, ele não tem nenhum arco narrativo.

Mais central à trama é Eloína, a travesti de “República dos Assassinos” (1979), que exibe uma fluidez de gênero comparável ao protagonista de “A Rainha Diaba” e demonstra pleno comando de sua vida em vários momentos da trama.

O Beijo da Mulher Aranha
Retratos oscilantes

Em “O Beijo da Mulher Aranha” (1985), o americano William Hurt foi premiado com o Oscar de Melhor Ator pelo papel, o primeiro na história a ganhar interpretando um homossexual. Sua performance como Luis Molina alterna entre a fragilidade física e a força que tira de suas crenças e dos filmes sobre os quais devaneia, na qual a personagem abraça tanto as dores quanto os prazeres inerentes à condição gay.

“Navalha na Carne” (1997), nova adaptação da peça de Plínio Marcos, parece, no entanto, um retrocesso: apesar de se construir em cima de material já celebrado e adaptado (o texto da peça está largamente inalterado), sua abordagem da personagem gay, Veludo, é bem mais caricata e escrachada que no filme de 27 anos antes, com muitas cenas apelando diretamente para o valor de choque.

A caracterização do homossexual em “Até Que a Vida Nos Separe” (1998) já é mais nuançada, nada pendendo para o cômico. Marco Ricca interpreta Paulo, um yuppie paulistano homossexual e enrustido, aflito por não conseguir se assumir para a família e ainda em luto pela perda de um namorado para a AIDS.

Madame Satã
Pós-2000

A virada do milênio viu o Brasil explorar mais produções com personagens homossexuais. O personagem-título de “Madame Satã” (2001), por exemplo, mostra valentia na resistência das pressões do mundo exterior e tem sua sexualidade escancarada para o espectador, em cenas com beijos entre João e outros homens e bastante nudez.

Apesar de também apostar em cenas de nudez e carícias entre homens, “Do Começo ao Fim” (2009) é um filme bem mais brando, por vezes, até de forma incômoda. Com um tema socialmente ainda mais polêmico que a homossexualidade (o incesto entre meio-irmãos), o filme peca por não explorar suas problemáticas, dando ao público personagens gays tão desprovidos de conflitos que a verossimilhança acaba sendo sacrificada.

Cena de Tatuagem
Nos dias de hoje

Por fim, a década de 2010 viu obras ainda mais ousadas abordarem o tema, com “Tatuagem” (2013), premiado no Festival de Gramado, trazendo personagens gays de vários tipos envoltos em um coletivo de arte de resistência política. Aqui, a fluidez de gênero e de sexualidade é apresentada naturalmente e é contrastada com o ânimo político do Brasil setentista.

“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2014) tem o mesmo quê de fantasia de “Do Começo ao Fim”, mas é uma história contada com mais sensibilidade e que não ignora completamente a realidade. O longa de Daniel Ribeiro insere o conflito a respeito do amor homossexual de maneira completamente natural e, em se tratando de adolescentes, não há muita exploração explícita de carícias sexuais, com o filme se atendo mais ao carinho do protagonista pelo objeto de seu afeto e sua busca por entendê-lo e ser correspondido.

Cena de Praia do Futuro, com Wagner Moura

“Praia do Futuro” (2014), que causou furor pelas suas cenas de sexo homossexual envolvendo o personagem do ator Wagner Moura, opta por mostrar um relacionamento menos idílico entre um brasileiro e um alemão. Aqui, os homossexuais são mostrados totalmente naturais, sem trejeitos e totalmente no domínio de sua sexualidade, ainda que Donato (Moura) tenha conflitos por conta de sua condição, a maior parte deles relacionados à família, representada no filme pelo seu irmão caçula, Ayrton (Jesuíta Barbosa).

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