Em “Cemitério do esplendor”, mais novo filme de Apichatpong Weerasethakul, somos levados para um mundo particular. Não se trata apenas de adentrarmos no cinema indie tailandês que já nos trouxe pérolas como “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” (2010), do mesmo diretor, ou filmes como “A última vida no universo” (2003), de Pan-ek Ratanaruang. O longa, que passou pelo Festival de Cannes no ano e estreou esse mês no Brasil, adentra num verdadeiro território de sonho, o que confunde na mesma medida em que encanta o espectador.

Se quando sonhamos, a ação não raro vagueia e deixa pontas soltas, o mesmo provavelmente se aplica na tentativa sumarizar o enredo de “Cemitério do esplendor” numa sinopse. Sabemos, de início, que um grupo de soldados está em um pequeno hospital rural improvisado no interior da Tailândia, e que eles sofrem de uma enfermidade curiosa: dormem profundamente, sem parar.

Sabemos também que duas mulheres os acompanham do lado de cá, das pessoas acordadas (será?): A jovem medum Keng (Jarinpattra Rueangram), que se voluntaria para ser uma ponte de comunicação entre os soldados e o resto do mundo; e Jenjira (Jenjira Pongpas Widner), senhora a partir da qual passamos a nos aprofundar mais no universo não-linear do filme, em especial, a partir da relação que ela trava com um dos soldados enfermos, que acorda eventualmente, Itt (Banlip Lomnoi).

Segundo Keng, os soldados dormem ininterruptamente porque suas energias são drenadas de fantasmas de reis e guerreiros do passado. Jenjira aceita tal sina por conta da visão dos espíritos de duas princesas, que lhe informam que eles jamais acordarão. A resiliência das mulheres, longe de contrastar com a posição ativa que Weerasethakul lhes dá no filme, encaixa-se à atmosfera onírica que o diretor reforça todo momento a partir de elementos diversos na linguagem fílmica.

É esse, aliás, um dos trunfos de “Cemitério do esplendor”, e que nos faz não nos irritarmos por não conseguirmos seguir totalmente uma linha de raciocínio para uma trama tão fragmentada: escolhas como os longos planos abertos e a ausência de uma trilha sonora instrumental são estruturados de maneira a dar sempre máxima atenção aos pequenos detalhes que dialogam com a proximidade entre os personagens, as meditações sobre a morte e a brevidade da vida. Weerasethakul parece querer dizer que, tal como o cinema, nossa percepção da existência é também feita de recortes que unem pequenas doses de melancolia, humor e fantástico, numa liga que não necessariamente entendemos à primeira vista.

A aproximação entre alguns dos elementos simbólicos de “Cemitério do esplendor” e o contexto político e social conturbado de seu país de origem é também uma alternativa válida para interpretar um pouco o filme. Não parece arbitrário que os assim chamados espíritos de reis do passado drenem as energias justamente de soldados numa Tailândia sempre à mercê do controle militar e eventuais golpes, assim como as citações, nunca de todo explicadas, a um projeto do governo nas redondezas do hospital improvisado.

A relação entre esses elementos é reforçada também na sequência em que Itt, cujo espírito toma o corpo de Keng, vagueia por um bosque junto a Jenjira. Ele descreve confrontos e riquezas do passado distante da época dos soberanos citados como a causa de sua narcolepsia, enquanto que ela foca ora na paisagem atual, ora em lembranças do próprio passado. Ali, cotidiano e história se fundem num mesmo plano, sobrepondo-se harmoniosamente.

O não-incômodo que a aparente confusão de “Cemitério do esplendor” gera se explica pela proposta que o filme derrama ao espectador: a de deixar a mente num estado similar àquela entre o sono e a vigília, no qual imagens de sonho podem aparecer a uma mente relativamente atenta e dar a impressão de fazer sentido. Assim, fantasmas e deusas são personagens tão corriqueiros à trama quanto Jenjira, Keng ou Itt. É como se estivéssemos dentro do sonho de algum dos soldados cujas mentes apontam ora para as conversas dos enfermeiros, ora para as próprias recordações, ora para elementos totalmente novos, o que de fato acontece com dois personagens em dado momento do filme.

Nesse sentido, “Cemitério do esplendor” é extremamente original, ainda que, isoladamente, nenhum de seus recursos fílmicos tenha algo de novo. Estão ali o extremo cuidado com a captação do som direto, elemento realista que, no entanto, casa com a “lógica de sonho” impressa por Weerasethakul; os reduzidíssimos movimentos de câmera, típicos de filmes asiáticos “contemplativos”; ou a fotografia de tons desbotados, que dá um senso de uniformidade ao tempo da narrativa, ao passo que trazem o contraste com as luzes do hospital que parecem mudar a partir dos ânimos dos pacientes narcolépticos. A suavidade do filme se fortalece a partir da maneira como esses elementos se integram ao longo das quase duas horas de duração do longa, que passam, por incrível que pareça, voando.