Meses atrás fiz um texto aqui sobre a atuação no cinema amazonense. Este assunto, um tabu da produção local, está cercado de desinformação, e também de alguma falta de interesse e boa vontade não apenas do público, mas também dos próprios diretores daqui.

Estou certo, por ter estado lá e assistido, de que aqui em Manaus há atores de ótima qualidade, e em bom número. Ao mesmo tempo, sei que isso não está tão claro se virmos apenas os resultados alcançados pelas médias dos filmes amazonenses.

Análise de atuação, pelo que se vê comumente, acaba caindo mais em gosto pessoal do que em análise técnica. Pela familiaridade que todos temos ao ver um ator em cena (seja pela herança das novelas, ou séries e filmes), fica parecendo algo natural saber se determinado ator está bem ou mal em cena. Claro que quando se trata de casos destacados, de bons ou maus exemplos, não é preciso ser um expert no assunto para detectá-los. Mas e quando não é evidente?

Pela massiva oferta norte-americana de entretenimento que nos chega ou pelo alcance dos folhetins da Globo existe, dentro do senso comum, certa antipatia por uma determinada estética, melanina, sotaque, ou apenas se busca, na maioria esmagadora das vezes, intérpretes com características físicas pré-determinadas. Ou seja, quando se pensa em atores amazonenses, o produtor, diretor, ou até mesmo o público, ou cai no estereótipo regionalizado, ou dá um jeito para encapsular nossas características dentro da forma branca, de olho claro e sotaque sulista.

E quando a análise é viciada dessa maneira, fica uma sensação de que o que os atores amazonenses têm a oferecer ao cinema local é pouco.

Já tive conversas com colegas diretores e roteiristas em que falavam apaixonados de ideias de filmes que tiveram, algumas já com roteiros prontos, e que se viam fazendo planos para trazer amigos atores de outras cidades para interpretarem estes papéis. Ou deixavam claro que a ideia era boa, mas precisaria de bons atores, dando a entender que tal demanda é impossível de ser cumprida aqui.

Isso não corresponde à realidade. Não é aquele tipo de afirmação polêmica, nem se trata de legislar em causa própria. É uma constatação do óbvio, na verdade. Manaus é uma capital ativa no teatro há décadas, com atores, dramaturgos, diretores, músicos históricos, destacados nacional e internacionalmente. Só a história do Tesc – Teatro Experimental do Sesc – surpreenderia muita gente.

Portanto, listo aqui cinco atores destacados no teatro que teriam muito a somar ao cinema amazonense. O critério principal são atores que possuem trajetória no teatro, mas que ainda não realizaram trabalhos em igual quantidade no cinema.

Qualquer lista é injusta, e é claro que o correto seria citar vários nomes a mais, mas simbolizo através destes cinco a potência que é comum ver nos palcos, e que poderia render frutos tão significativos quanto na tela.


Ednelza Sahdo

O tipo de atriz que quando está em cena carrega o peso de uma vida dedicada ao palco. Algo do nível de Bibi Ferreira, Paulo Autran, Fernanda Montenegro. A comparação com gigantes do teatro brasileiro não é descabida para Ednelza Sahdo, a Dama do Teatro Amazonense, nosso nome mais representativo na atuação, com apresentações inesquecíveis no Teatro Amazonas. Não apenas lá, claro, mas este lugar aparentemente traz a ela uma energia criativa diferente, parece que numa casa com esse tamanho e história a atriz se sente no seu habitat, adquire outro tamanho, um potencializa o outro.

Além do domínio avançado de voz e corpo, Ednelza carrega um magnetismo impressionante. É uma figura que, quando está no palco, tem presença indiscutível, um estado de espírito que a torna diferente do que é quando está fora dali. Não se trata de atuação. É algo anterior a isso, refiro-me à presença. Um tipo de autoridade que te faz acreditar no que está ali sem colocar aquilo em dúvida, pois, nossa atenção já está voltada para o que está em cena, para ‘quem’ está em cena, e que iremos seguir aonde quer que ela deseje.

Podemos chamar isso de técnica, processo químico/biológico do corpo, magia, Deus, mas o fato é que Ednelza é daquele tipo de intérprete que carrega isso como se nem fizesse força. Simplesmente é.

“A Casa de Bernarda Alba”, “Ventos da Morte”, “Bodas de Sangue” são dos trabalhos recentes, que pude acompanhar, em que a maestria de Ednelza se sobrepõe ao que está ao redor. Não porque o entorno não seja bom, mas porque os olhos estão nela, é impossível competir, é uma lei natural das coisas.

Matheus Nachtergaele reconheceu isso ao dar um papel a ela em “A Festa da Menina Morta”. Até hoje, o ator e diretor mantém uma relação com Ednelza, e ele já demonstrou publicamente diversas vezes o respeito que tem pela sua trajetória.

As palavras parecem vagas porque é difícil de traduzir aquele poder em frases curtas. Realmente é só assistindo pra compreender.



Leonel Worton
 

O nosso gosto pessoal vai mudando com o tempo, naturalmente. Alguns anos atrás acompanhava com muito afinco as peças apresentadas aqui, e mudei várias vezes de opinião sobre quem era o ator que mais gostava, a atriz, o diretor, o espetáculo. Mas tem um nome que sempre aparecia: Leonel Worton.

Tendo formação da Cia Pombal de Teatro, o ator e diretor possui uma maneira simples e direta de se expressar. Sempre me impressionou a forma como falava, o tom de voz baixo, como se portava em cena, como aquilo era muito particular, e funcionava muito bem com ele. Infelizmente, é normal vermos atores assumindo um corpo e uma voz que não são seus na ideia equivocada de expandir sua atuação, pensando que assim adquirem postura coerente com o palco. Trata-se de uma sintonia que o tempo trás, e que Leonel faz parecer simples.

Hoje em dia parei de elencar em rankings os trabalhos que mais gosto, etc.., mas se tivesse que resgatar esse exercício, certamente colocaria “Deus Danado” (direção de Daniel Mazzaro do texto de João Denys) como das apresentações que marcaram minha vida. Leonel Worton e Eliézia de Barros (outra atriz monstruosa) eram dois cavalos em cena, em uma peça de quase duas horas, em que o jogo entre os dois variava de nível e intensidade regularmente, exigindo maleabilidade, mas acima de tudo, domínio técnico para lidar com um texto de difícil condução. Coisa de maluco.

A fala calma e baixa de Leonel rapidamente pode dar espaço a uma explosão de fúria tão intensa, que se torna mais do que simplesmente um ator que sabe ir de 0 a 100 em uma escala de intensidade. Ele sabe com detalhes fazer o 0, entende onde estão as potencialidades da condução neste lugar, da mesma maneira se tiver que fazer o oposto disso. Na verdade, é um ator de fala calma que compreende que isso potencializa os momentos que precisa ser expansivo, excessivo. É capaz de acessar tudo, na verdade.

Convidei Leonel para atuar no meu segundo curta-metragem, “O Tempo Passa”. Bom, por questões éticas não vou não vou falar muito, até porque seria estranho, mas dirigi-lo certamente foi especial, me ensinou muito como ator e diretor. Certamente tem muito a ensinar aos colegas do vídeo.



Taciano Soares

Notabilizado como diretor do Ateliê 23 – cia de teatro manauara com o trabalho mais ativo na cidade há alguns anos –, Taciano Soares é um ator intenso e assume força descomunal em situações cênicas extremas.

Anteriormente integrante da formação original da Cia Cacos de Teatro – grupo de jovens artistas que em poucos anos de atuação recebia convites e reconhecimento de publicações, dramaturgos, e diretores relevantes do Brasil –, é um dos criadores do Festival Breves Cenas, e uma figura consciente politicamente, assumindo responsabilidades através da sua função como artista.

Mas, ao mesmo tempo, quando está em cena, parece que tudo isso dá lugar a um animal intuitivo, expressivo, que se comunica de maneira expansiva com o corpo e a voz,  vivenciando o que exprime. Poucos atores passam de maneira tão vibrante, tão verdadeira, o ato de rasgar a carne, se desnudar, tornando possível que o veja por completo, transbordando.

Taciano é o ator que mais bem consegue realizar algo dificílimo: a emoção exacerbada que não cai na gritaria, o choro dolorido que comove, na verdade, pelo pouco que segue sem se revelar, no que fica só para o intérprete. É um estilo de representação que muitos caminham, mas, que poucos são capazes de realizar com tanta potência.

Claro que tudo isso, ao mesmo tempo, é técnico. Como diretor e ator há mais de dez anos, Soares tem domínio da técnica, e é muito disciplinado na condução de seus processos. Mas, de forma inteligente, ele a usa para potencializar o sentimento, para o que aquece o corpo, usando os mecanismos como ferramentas seguras para buscar o que há de mais intuitivo, o que nos escapa sem controle, ao que temos de menos controlado na hora de expressar sentimentos.

Ainda não vimos Soares em um filme, até porque sua vida realmente é dedicada ao teatro, até mesmo como filosofia de vida. Ao mesmo tempo, é ator um movido por desafios e, certamente, embarcaria em uma ideia de filme que o fizesse acessar suas inquietações artísticas. Fica a dica e o pedido, na verdade.



Dimas Mendonça

Membro durante anos do Tesc, Dimas Mendonça é uma figura muito peculiar. Conforme foi avançando na sua trajetória de ator, tornou-se um artista curioso, investigativo, ético. Colocando em outros termos: tornou-se maior do que o intérprete que simplesmente vai ao ensaio, decora o texto, ensaia, apresenta, e volta para casa para viver uma vida normal.

No sentido mais romântico da coisa, artistas não possuem vida totalmente normal. Claro que estão inseridos na sociedade e podem ter cotidianos absolutamente parecidos com os de outras pessoas, mas, em algum momento, o olhar se desloca, busca outra lógica, observa os conflitos por um ponto de vista menos prático.

Com o seu “Processo Natimorto”, Dimas passou a investigar um teatro mais performativo, não-narrativo, linguagem completamente diferente do que realizava com o Tesc, dirigido por Márcio Souza. Mas ele não parou por aí, e caminhou por diferentes linguagens durante sua carreira demonstrando que seu objetivo era se ver fora da zona de conforto, aumentando seu repertório como intérprete, sujando os sapatos, mergulhando no que não sabe.

Mas mesmo fazendo trabalhos completamente diferentes entre si, Dimas apresenta a mesma integridade. Por estar sempre pesquisando, buscando o novo, claro que nem sempre acerta. Mas, normalmente, o seu trabalho, a sua investigação torna-se a melhor coisa de tudo o que participa.

Exatamente por estar em investigação constante, Dimas já realizou trabalhos no audiovisual, com destaque para o videoclipe de Rafael Ramos, “Fitas Livres”, da banda Supercolisor, além de um curta muito especial, “Jardim de Percevejos”, de Francis Madson. Certamente veremos o seu rosto ainda em novas produções, o que, para mim, é motivo de satisfação, afinal um dos atores mais disponíveis e talentosos do nosso teatro tem interesse em contribuir pro nosso cinema.

Colegas diretores, por favor, não desperdicem oportunidades como essa.



Isabela Catão

Quando falei da Ednelza citei a característica que define uma estrela: uma espécie de brilho natural, algo vindo sem esforço, um estado de consciência que quando acessado traz outro tônus muscular, outro foco nos olhos, nos gestos.

Trazendo isso com toda a responsabilidade necessária, entendendo o momento de cada uma, e sem querer de forma alguma comparar talento, carreira, etc., vejo isso nesta jovem, Isabela Catão.

Há alguns anos dedicando-se ativamente ao teatro manauara no Ateliê 23, Catão teve uma evolução muito clara no decorrer de sua carreira. É realmente bonito de ver o seu crescimento peça a peça, deixando de ser uma menina tímida, insegura para tornar-se uma mulher com tantas capacidades cênicas, de improvisação, densidade dramática, domínio de palco. E que hoje chama a atenção do público com naturalidade, já com alguma autoridade em todo esse processo.

Mais do que isso: é ver que ela só chegou neste lugar porque se dedica muito e por ter uma ética inabalável, muito maior do que as distrações pelo caminho. Catão é obcecada por fazer melhor, por evoluir, por nunca estar satisfeita do lugar onde chegou, demonstrando respeito quase religioso aos nomes que chegaram a lugar de destaque no nosso teatro.

Isabela tem alguma coisa na câmera que brilha: há um carisma diferente, uma energia que te faz querer estar perto, te faz ter curiosidade para saber o que ela está pensando, onde ele nos levará. Uma leveza ingênua que não é boba, que rapidamente pode se transformar em emoções que não são superficiais, o olhar convence sem esforço.

Já faz alguns anos que Catão vem trilhando uma estrada com trabalhos no audiovisual, tendo duas participações de relativo destaque em duas produções da Globo, “A Força do Querer” e “Aruanas” (ainda inédita, vai estrear este ano). Se eu puder apostar, creio que nossa atriz vai fazer carreira fora daqui. Os méritos de sua atuação são cada vez mais fortes, parece uma questão de tempo.

E que bom que essa perspectiva surge para alguém que trabalha tanto, e tem o pensamento tão focado. Certamente não é por acaso.

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