O heavy metal, subgênero do rock nascido na Inglaterra, é caracterizado pelo peso e rapidez do seu som. A cabeleireira e a indumentária  de muitos de seus admiradores também o identificam no grande público. Para os iniciados, ele é um estio musical diverso e sofisticado, com raízes na Música Clássica e no Blues. A fidelidade religiosa, às vezes fundamentalista, de fãs seus também impressiona.

O estilo recebe críticas por causa do seu “barulho” e do visual heterodoxo ligado aos seus admiradores. Além disso, ainda está para nascer o metaleiro que nunca ouviu alguém dizer que o gênero é “do demônio”.

O cinema, e em especial os documentários, pode fazer as pessoas se informarem, reverem seus pré-conceitos e, ao mesmo tempo, apreciarem obras de valor artístico. Com isso em mente, o Cine SET analisa cinco obras de não-ficção que falem sobre o heavy metal com relevância artística e documentária. Dessa forma, pretende-se mostrar a variedade de contextos relacionados ao gênero e, antes de tudo, indicar cinco filmes que, graças às suas qualidades, transcendem gostos musicais.

Ruído das Minas, de Filipe Sartoreto

Fruto de um TCC de comunicação social da UFMG, o documentário fala sobre a cena metaleira de Belo Horizonte dos anos oitenta. Sartoreto procura mostrar como o provincianismo, a Ditadura Militar, a falta de recursos dos músicos e o tradicionalismo católico da capital mineira se transformaram em (contra)ingredientes da criação do Brazilian Thrash Metal, estilo influenciado por americanos e alemães que fez o caminho reverso e passou a influenciar os estrangeiros. Sarcófago, Witchhammer, Cogumelo Records e, claro, Sepultura, representado pelo baixista, Paulo Jr., mostram como um bando de moleques usou a música para se revoltar contra o status quo da sua cidade, mas sem deixar de se orgulhar dela, e acabou entrando para a história do heavy metal.

O documentário apresenta falta de apuro na fotografia, com planos cheios de elementos desnecessários e movimentos de câmera que não dizem nada. O ritmo, que se arrasta no segundo ato ao falar de picuinhas e de festivais de BH, também prejudica a obra.

Felizmente, essas falhas perdem força por causa da abordagem usada para falar sobre o Sepultura. Em teoria, seria mais lógico beneficiar a banda brasileira que foi aonde nenhuma outra esteve. Sartoreto, ao contrário, privilegia o todo. Ele não nega a importância da ex-banda de Igor e Max Cavalera, que são as ausências notórias do documentário. Trata-a como sendo de caras trabalhadores que tiveram senso de oportunidade. Mas também a critica por não ter se lembrado dos colegas de cena quando “chegou lá”. Além disso, afirma que outras bandas, como o Sarcófago, também são admiradas mundo afora.

Dessa forma, O Ruído das Minas, mesmo com falhas típicas de alguém no início da carreira no audiovisual e sem muitos recursos, vale pelo modo como registrou uma cena importante para o heavy metal, surgida num contexto inesperado, sem sobrevalorizar o seu representante mais bem-sucedido.

Full Metal Village, de Cho Sung-hyung

O Wacken Open Air é o maior festival de heavy metal do mundo. Realizado todos os anos no norte da Alemanha, ele reúne as maiores bandas do gênero e atrai gente de vários países. Sung-hyung procurou falar dele a partir dos moradores de Wacken, a cidadezinha-sede do evento. O resultado surpreende pela mistura de indiferença, desconfiança e senso de dever que entrevistados demonstram.

Em sua maioria idosos, os moradores de Wacken, segundo o documentário, gostam da rotina de ordenhar vacas e de participar de grupos de música tradicional alemã. Os silêncios e os planos abertos e longos, que privilegiam a natureza, reforçam o bucolismo. Há entrevistados que tratam os participantes do festival como excêntricos ou como “seguidores do demônio”. Mesmo assim, eles gentilmente ajudam na organização do WOA, mostrada em paralelo à vida sem muitos agitos, a partir de detalhes como a colocação de banheiros químicos e o levantamento de palcos.

O desconhecimento de outros entrevistados sobre o festival realizado em todos os agostos numa fazenda lamacenta da região também marca a narrativa. Para contrapor isso e os pré-conceitos, a diretora entrevista um casal que participou da criação do festival, mas não seguiu com ele por causa do filho, e uma dupla de garotas que veem no WOA uma saída para a falta de graça e mesmice do vilarejo.

Full Metal Village é mais um relato da vida no norte da Alemanha do que uma história sobre heavy metal. O estilo musical aparece como um elemento alienígena, fora da rotina de Wacken. O maior mérito de Sung-hyung foi ter contado essa “quebra” de forma simpática tanto aos moradores da cidadezinha quanto aos metaleiros.

Global Metal, de Sam Dunn

O documentarista Sam Dunn, um antropólogo apaixonado por heavy metal, estreou com Metal: A Headbanger’s Jouney. Nele, as raízes do gênero são analisadas, e há a ligação dele com temas como inadequação ao mundo, masculinidade e transgressão musical. No seu segundo filme, Global Metal, o canadense expande a sua análise para ver como o estilo se transformou num fenômeno global. Para isso, ele sai do eixo América do Norte-Europa e entrevista representantes da cena de países como Índia, Brasil, China, Japão e Indonésia.

Global Metal supera o antecessor porque tem menos necessidade de se autoafirmar e fazer proselitismo de causa, ainda que o faça em alguns momentos, como no final. Em “Global”, Dunn procura entender como essa expressão cultural de origem anglosaxônica se adaptou às mais distintas culturas. O diretor também mostra como os seus fãs ao redor do mundo comunham de uma unidade reforçada por causa das suas diferenças. Isso não aparece só com o sentimento generalizado de deslocamento. A comunhão também é demonstrada quando Dunn liga, por exemplo, as letras de protesto do Sepultura com o descrédito que os jovens indonésios tinham com seu governo, ou quando o diretor mostra, em tons simpáticos, um rapaz do Kuwait que tem pelo Iron Maiden uma devoção religiosa tão intensa quanto a que os fãs brasileiros temos pela banda.

Tempos depois, Sam Dunn dirigiu filmes sobre o Iron Maiden e o Rush. Criou também uma série de TV para o VH1 onde explica os subgêneros do heavy metal. A série segue a linha dos seus dois primeiros documentários. Por outro lado, os filmes sobre as bandas são declarações de amor de um fã que, com certeza, encontram ressonância com outros fãs. Seria complicado dizer que eles atingem o mesmo impacto com pessoas que desconhecem Bruce Dickinson ou Neil Peart. Por isso, se você tem interesse em entender o heavy metal como um todo, sugere-se o “Headbanger’s Journey”, a série e, especialmente, o “Global”.

https://www.youtube.com/watch?v=0C8Ybq__3Rg

Some Kind of Monster, de Joe Berlinger e Bruce Sinofsky

O que acontece quando deuses do metal entram em crise e, por isso, chamam um terapeuta para ajudá-los? Some Kind of Monster responde essa questão. O Metallica viveu uma de suas piores fases no início dos anos 2000. O baixista Jason Newsted decidiu sair, o vocalista James Hetfield foi para a rehab por causa dos excessos com o álcool e ele e os amigos, o baterista Lars Ulrich e o guitarrista Kirk Hammet, mantinham uma relação desgastada. Antes de começarem a gravar o álbum St. Anger, os três chamaram o psicólogo Phil Towle e uma equipe de filmagem para acompanhar o processo de criação artística e as sessões de terapia em grupo.

É interessante notar a fragilidade dos três e da sua interrelação conflituosa. Por exemplo, Hammet, impotente e desnorteado, não consegue intervir na briga de egos entre Hetfield e Ulrich. Enquanto o vocalista explode com mais facilidade, o baterista, cabeça-dura, discorda de tudo e chega a mandar o frontman se ferrar (é isso o que geralmente aparece nas legendas para “fuck you”). Para poderem respirar, eles arranjaram hobbies fora da música. Hetfield anda de moto. Fugindo do estereótipo de metaleiro, Ulrich pinta quadros cubistas e Hammet surfa.

Compreensivelmente, os diretores optaram por deixar o alcoolismo de Hetfield apenas no discurso e em imagens de arquivo. Isso aconteceu primeiro por uma questão de respeito e depois porque, afinal de contas, o vocalista era o que mais discordava da ideia de se fazer um documentário sobre a sua intimidade e a rotina da sua “segunda família”.

Por outro lado, eles não pegaram tão leve com Ulrich quando citaram o caso Napster. Essa briga, que o tempo só confirmou quão reacionária ela era, resulta em momentos do filme em que terceiros criticam, ironizam, ridicularizam a banda. A réplica do baterista, ao dizer que fez aquilo que achava ser o melhor, apenas reforça a crítica e a sua imagem de cabeça-dura.

Some Kind of Monster tem estes e outros méritos. Mas o maior deles, seguramente, foi ter saído das fronteiras de documentário sobre música para mostrar como as relações podem ser dilaceradas pela convivência e pelo passar do tempo.

Anvil! The Story of Anvil, de Sacha Gervasi

Os canadenses Steve “Lips” Kudlow e Robb Reiner tiveram seus 15 segundos de glória nos anos oitenta. Ao lado de Scorpions, Bon Jovi e outros figurões, a Anvil, a banda deles, agitou a cena metal da época. Todos entraram para a história, menos os protagonistas de The Story of Anvil.

Gervasi explica como a má administração de carreira fez eles fracassarem, mas não se limita a isso. Ele privilegia a amizade dos dois, que têm semelhanças com a descrita no clássico da Literatura Dom Quixote.

Velho e sem dinheiro, Lips, tal como o Cavaleiro da Triste Figura, quer reconquistar a glória de um tempo passado, perdido. Para isso, ao lado do amigo Reiner, seu fiel escudeiro, faz uma turnê com a Anvil pela Europa e pelo Japão na base da cara e da coragem.

O brilho do documentário está nas dificuldades que a dupla encontra na sua jornada e na amizade dos protagonistas. Pinos, falta de dinheiro, pouco público e trens perdidos marcam a viagem deles pela Europa. Dói no coração ver que o produtor na República Tcheca queria lhes pagar com um prato de comida pelo show que fizeram numa espécie de boteco.

As dificuldades são contornadas pelos laços de amizade sólidos entre os protagonistas. Lips insiste em querer reconquistar a glória, por mais que a velhice, os fracassos do passado, as dificuldades do presente, as poucas esperanças para o futuro e, sim, a falta de talento digam que ela nunca mais voltará. Reiner tenta fazê-lo enxergar a realidade, mas o segue pelos anos de amizade e por ter sido seduzido com a ideia de que poderia alcançar mais uma vez o sucesso.

The Story of Anvil não tem um final feliz nos moldes clássicos, tal como Dom Quixote. Lips não morre, como o herói do clássico da literatura, mas não cumpre seu objetivo da maneira desejada. Garvasi mostra sua sensibilidade nesse momento. Ele e o amigo ficaram felizes com o que alcançaram. Além disso, o caminho por que percorreram para chegar ao resultado vale mais do que este propriamente dito, pois foi na jornada onde eles mostraram a força da sua amizade e a beleza da perseverança e do idealismo.

No final das contas, The Story of Anvil diz que, por mais que os moinhos de vento que a vida nos impõe nos derrubem, cedo ou tarde, devido aos nossos erros, fraquezas e à nossa observação distorcida da realidade, vale a pena lutar pelos nossos objetivos e ser fiel a quem realmente importa.

https://www.youtube.com/watch?v=FF4H8lB2Y_o

Como você deve ter percebido, há entre esses documentários aqueles que abordam mais diretamente o heavy metal, enquanto outros o usam como um elemento para contar um drama. Os filmes foram escolhidos por que julgou-se que, com eles, poderíamos ter um panorama satisfatório dos documentários que se relacionam com o gênero. Por isso, a lista não recebeu numeração nem notas, pois não se pretendeu com ela fazer um “Best Of”. Deixamos os juízos de valor sobre que filme é melhor na sua conta. Dessa forma, gostaríamos de saber sua opinião sobre os filmes mencionados e de outros, como Until The Light Takes Us e Get Thrashed.

Que esse bate papo tenha cara de conversa de fila de show. 😉