É sempre curioso e chocante notar como alguns dos nomes mais importantes do mundo cinéfilo não passam de palavras ao vento à maioria dos ouvidos incautos. Não se trata, naturalmente, de “privilégio” apenas da Sétima Arte. Mas talvez o cinema, por seu caráter massivo e popular, saiba explicitar como nenhum outro meio as fronteiras entre o grande público e os “entendidos”. 

O primeiro passo na superação dessas barreiras, é claro, só pode ser o contato com as obras em si. Nesse sentido, a mostra “Todo Bressane”, que a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro tem tocado desde mês passado, é um daqueles esforços de encher os olhos. É uma retrospectiva completa da vasta filmografia do cineasta carioca, em toda a glória de suas vertiginosas ramificações – incluindo, diga-se de passagens, filmes raros e alguns até inéditos. Pra completar, muitas das projeções são em 35mm. Bom demais pra ser verdade. 

Escrevo tudo isso com certo pesar porque, enquanto escrevo, estou a milhares de quilômetros de casa, pedalando pelo litoral potiguar. Ou seja: não pude acompanhar algumas das sessões que têm acontecido na minha cidade natal. Triste, eu sei. 

Por isso, como forma de penitência, talvez seja a hora de listar meus cinco Bressane favoritos, enquanto dou goladas na minha caipirinha em frente à Praia de Pipa, como o soldado do cinema que sou.

5. O Anjo Nasceu (1969)

O cinema inicial de Bressane parece ter como grande mote organizador a violência. São filmes brutos e sanguinolentos que se assemelham a um caleidoscópio da bárbarie. Também, pudera: estávamos no pós-AI-5. O sonho conscientizador da “igrejinha do Cinema Novo” (parafraseando Rogério Sganzerla, veja bem) caíra por terra. O que resta é a terra de ninguém que os bandidos Santamaria (Hugo Carvana) e Urtiga (Milton Gonçalves) precisam percorrer em sua fuga obstinada. No caminho, invadem uma casa de família e tocam o terror na ricaça interpretada por Norma Bengell, enquanto uma ferida aberta na perna de Santamaria apodrece lentamente. No antológico plano final, os bandidos desaparecem no horizonte de uma estrada vazia, rumo a lugar nenhum – o grito de fim de década mais angustiado da história do cinema.

4. Sedução da Carne (2018)

A beleza das coisas do mundo, a exuberância dos sentidos, tudo o que tem o poder de nos atravessar: em chave nietszschena, uma das constantes do diretor, Bressane opta pelo caminho menos óbvio e (pelo menos, a julgar por algumar reviews do Letterboxd) mais hermético na hora de tratar dessas palavras-chave. O resultado segue, por um lado, a mesma tônica da sua fase tardia, com jogos teatrais altamente expressivos (aqui, uma espécie de solilóquio em cenário minimalista de uma mulher acompanhada por seu fiel papagaio). Por outro, o que está em foco é o mote que parece nortear toda a carreira do diretor: empunhar uma câmera e filmar o mundo é não apenas delicioso; é imprescindível.

3. Matou a Família e Foi ao Cinema (1969)

Ao lado de “O Anjo Nasceu”, este é provavelmente o filme mais famoso de Bressane. Em uma narrativa fragmentada, que é mais uma colcha de retalhos pop proto-Datenística do que um filme convencional, Bressane entrelaça diversas historietas de violência. As variáveis são muitas – um filho alienado de seus pais, um casal frustrado e seu recém-nascido que não cessa o choro etc – mas o resultado é sempre o mesmo: morte. Não por acaso foi filmado ao mesmo tempo que “O Anjo Nasceu”.

2. Cuidado, Madame (1970)

Com a exibição de “O Anjo Nasceu” no Festival de Brasília (o filme seria censurado logo depois), Bressane ganhou um aliado e parceiro criativo na plateia: Rogério Sganzerla, que já havia dirigido com bastante sucesso seu “O Bandido da Luz Vermelha”. Do encontro nasceu a produtora carioca Belair, espécie de empreitada comunitária de cinema que deu vazão a seis filmes em pouquíssimos meses de vida. Este é um dos três filmes realizados por Bressane pela Belair e conta com todos os elementos que se pode esperar da produtora: a presença de Helena Ignez, esposa de Sganzerla, e de Maria Gladys; a improvisação e o jogo com o acaso (aqui, na inesquecível sequência em que as duas atrizes barbarizam pelas ruas de Copacabana); enfim, o sentimento geral de intensa liberdade e confiança no processo artístico. O mote é a luta de classes: Gladys é uma empregada doméstica que assassina suas patroas uma após a outra. Entre uma sequência de assassinato e outra, o filme ganha as ruas do Rio de Janeiro, enquanto o olhar de transeuntes desavisados encontra a câmera numa total confusão diante daquela espécie de happening. Não tivesse dirigido mais nada, este filme já seria o suficiente para cimentar a posição de Bressane no hall dos que melhor filmaram o Rio.

1. Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971)

Bressane no exílio. Como parte da intelectualidade artística brasileira da época, o cineasta buscou refúgio nas ruas de Londres. Aqui, elas se tornam palco para o assassino estóico de Guará Rodrigues, que mata, uma a uma, as loiras da então Terra da Rainha. Enquanto choro de um exilado, o filme não deixa de ser um par interessante com, digamos, o disco homônimo de Caetano Veloso daquele mesmo ano. Mas enquanto a energia do tropicalista aparece minada ante o baque duro da ditadura e da saudade, Bressane é todo brutalidade. À violência dos atos encenados se contrapõe o rigor das composições de Bressane, que sabe explorar as linhas internas de um quadro como poucos na história das artes pictóricas. Mas o mais curioso disso tudo é que, indisponível ao grande público por décadas, o longa finalmente ganhou a luz do dia quando uma conta de memes de cinema no (saudoso) Twitter deu de cara com um release do filme esquecido no Vimeo. Daí para os drives da vida foi um pulo. E a pirataria salvou o dia na Terra Brasilis.