É inevitável pensar durante os 105 minutos de duração de “Cinquenta Tons de Liberdade” sobre qual é mesmo a história do filme. Seria sobre a relação do casal regada a sexo ou o perigo trazido pelo ex-chefe de Anastasia Steele (Dakota Johnson)? Ou então estaríamos vendo uma tentativa de Christian Grey (Jamie Dornan) superar os traumas do passado? O fato é que pouco importa: “Cinquenta Tons de Liberdade” é um filme tão antiquado e sem sentido que, mesmo divertindo com tantos absurdos, irrita tamanho o machismo em cena.

Este desastre em forma de filme fecha um desastre em forma de trilogia. Desta forma, imaginava-se que os grandes momentos da história tivessem sido guardados para o final. Evidente que a escritora E.L James e muito menos o roteirista Niall Leonard não possuem a menor capacidade de construir algo coeso. A sensação é de que o último capítulo é uma extensão do segundo longa, o qual já poderia ter sido condensado no primeiro. Em “Cinquenta Tons de Liberdade”, a ameaça ao casal Anastasia-Grey não convence em um único momento, afinal de contas, eita vilãozinho burro. O personagem “interpretado” por Eric Johnson não apenas possui os piores planos (invadir a residência do casal com dois seguranças lá dentro?) como consegue ser abatido das formas mais fáceis possíveis (a sequência final é inacreditável). O caos narrativo atinge também figuras importantes como a mãe do protagonista (coitada da Marcia Gay Harden) que aparece em uma única cena, enquanto Kim Basinger é eliminada da obra com apenas uma referência a ela.

Sobra para o relacionamento entre Grey e Steele conduzir a trama. Eis que vem os maiores pecados do filme. Chega a ser inacreditável e até anacrônico “Cinquenta Tons de Liberdade” ser realizado em plena era de denúncias de assédio em Hollywood e da luta do #MeToo por direitos iguais entre homens e mulheres nas relações trabalhistas. O que o filme propõe não é apenas uma submissão feminina na relação sexual, o que, com boa vontade, poderia ser aceitável dentro de um relação consensual entre um casal. A obra traz sem pudor ou contraponto uma completa subserviência de uma mulher aos caprichos e desejos de seu marido desde os aspectos profissionais até as relações de amizade dela.

Assim como ocorreu há três anos em “Cinquenta Tons de Cinza”, Anastasia Steele continua sem voz de comando no relacionamento.

Quem decide o rumo da lua de mel? Grey.

Quem decide a casa onde vão morar? Grey sem consultá-la.

Quem decide o que ela deve fazer quando sair do trabalho? Grey.

Quem decide se ela terá seguranças para acompanhá-la o tempo todo? Grey.

Quem decide a hora que ela deve dirigir ou não o carro? Grey.

Qual o email Anastasia deve usar no trabalho – com ou sem o sobrenome do marido? Grey quer decidir.

O assustador disso tudo é observar como o roteiro busca transformar essas situações absurdas para os dias atuais em algo natural de uma linda história de amor com Anastasia tentando convencer o marido com muita ternura e afeto. Não é à toa que a trilogia seja originada de uma fanfic de “Crepúsculo”, outra série que via a loucura da protagonista como prova de amor para o seu príncipe encantado. Por tudo isso, quando os protagonistas concordam que não possuem capacidade para serem pais, deu vontade de gritar no meio do cinema: EXATO!

“Cinquenta Tons de Liberdade”, entretanto, vai além ao prestar um desserviço para qualquer tipo de busca por sororidade ou autonomia feminina. O duelo entre a personagem de Dakota Johnson com a arquiteta loura é constrangedor, pois, coloca as duas como fêmeas no cio na luta pelo macho alfa. O que é mais chocante é como o momento termina: Anastasia somente consegue se impor ao pedir que a rival a chame de Sra. Grey. Em seguida, ela é autorizada por Christian a dirigir o carro do casal! A produção também seria reprovada com louvor em qualquer Teste Bechdel já que, quando duas personagens femininas, estão em cena elas falam apenas sobre seus homens.

Pelo menos, há quem saia feliz da sessão do filme.

O dono da Audi, por exemplo, não pode reclamar. O comercial do novo carro da empresa feito durante uns cinco minutos de exibição consegue mostrar todas as qualidades do veículo. A empresa do estilista de Anastasia e a marca de jeans rasgados utilizado por Grey também saem satisfeitas de “Cinquenta Tons de Liberdade” assim como as prefeituras de Paris e Aspen devido às tomadas generosas copiadas da Globo com seus sobrevoos pelo Rio de Janeiro das novelas de Manoel Carlos.

A Universal Pictures mostrou toda a sabedoria e mandou o diretor James Foley meter momentos para alavancar a trilha sonora. Isso transforma o fim do filme em que vemos a retrospectiva dos “momentos-chaves” da trilogia embalada por “Love Me Like You Do” de Ellie Goulding. Nem “Malhação” em seus piores momentos faria melhor. Falar na música de “Cinquenta Tons de Liberdade”, aliás, é, sem dúvida, citar o trecho WTF de Christian Grey cantando “Maybe I´m Amazed” no piano. É possível sentir todo o constrangimento de Jamie Dornan a cada nota tentada. Força, rapaz!

E as cenas de sexo, Caio? Continua o mesmo sexo gourmet da sessão pornô do Multishow sem tanta nudez e pouca ação de fato.

Dizer que eu não me diverti assistindo o longa seria mentira. Tenho uma queda por filmes ruins e “Cinquenta Tons de Liberdade” preenche esta cota de absurdo. Admito até que sentirei falta da mediocridade de E.L James todos os anos.

Por outro lado, o fim da trilogia, talvez, marque o fim de uma era de anacronismo em Hollywood e produções tão machistas como essa não sejam mais aceitas tanto pelo público quanto pela própria indústria do cinema.