Lugar de mulher é, entre outros tantos lugares, na crítica de cinema. Com esse mote, o Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema passou a reunir, desde o segundo semestre de 2016, profissionais dedicadas a essa atividade em todo o país. “Começamos a convidar mulheres atuantes no meio crítico”, explica a crítica Samantha Brasil, uma das criadoras do coletivo. “Cada mulher trouxe novas mulheres e hoje estamos com uma rede de 82 integrantes. Um dos muitos pontos que nos une é desconstruir o ‘mito’ de que não há mulheres críticas de cinema no país”.

O nome do grupo homenageia Elvira Gama, que em 1894 foi a primeira mulher no Brasil a escrever sobre a imagem em movimento, na coluna “Kinetoscópico”, do Jornal do Brasil. Não por acaso, as participantes do coletivo são também chamadas de “Elviras”, e o que era um grupo de debate de críticas no Whatsapp hoje de tornou um movimento maior.

Hoje, o coletivo vai muito além das conversas no bate-papo, contando com críticas de todas as regiões do país, e define suas diretrizes e atividades em conjunto principalmente a partir da lista de e-mails, além de ter uma página no Facebook. Em linhas gerais, as elviras trabalham em frentes como divulgação das atividades e trabalhos dos membros, indicação de críticas para a composição de júris de mostras e festivais, incentivo à crítica de filmes feitos por mulheres ou que debatam questões de gênero e sugestão de mulheres para compor associações locais de críticos de cinema, além da própria Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

Dois momentos foram especialmente marcantes na recente história do coletivo, ambos ocorridos na 20º Mostra de Cinema de Tiradentes. O evento, que aconteceu de 20 a 28 de janeiro de 2017 na cidade mineira, contou com a contribuição “oficiosa” da elvira Samantha Brasil. Ela questionou por que a mesa dedicada à carreira das atrizes e diretoras Helena Ignez e Leandra Leal tinha apenas participantes do sexo masculino, sem nenhuma mulher crítica de cinema dialogando com a obra das artistas também mulheres, o que gerou uma reflexão nas próprias realizadoras sobre a necessidade de mais mulheres falando sobre cinema.

A segunda contribuição, agora oficial, foi das elviras Ivonete Pinto, Flávia Guerra e Camila Vieira no debate “Mulheres na Crítica: Cenário Brasileiro”, uma discussão que rendeu casa cheia. “Após o nosso lançamento nacional em Tiradentes, houve uma procura enorme de mulheres querendo participar do Coletivo”, relembra Samantha.

As elviras Flavia Guerra, Cecilia Barroso e Samantha Brasil falam sobre a importância da maior representatividade da mulher no cinema e na crítica

Razão de ser

O surgimento das elviras é mais que justificado quando observamos a carência de mulheres no cenário da crítica. Dos 97 críticos hoje listados no site da Abraccine como membros da associação, apenas 18 são mulheres, ou seja, 18,6% dos associados. Destas, cinco são de São Paulo, quatro do Rio de Janeiro, quatro do Rio Grande do Sul, quatro da Região Nordeste (Paraíba, Sergipe, Bahia e Ceará) e uma é do Distrito Federal. Não há membros do sexo feminino da Região Norte (de fato, há apenas dois homem afiliados, do Pará).

O coletivo tem a pretensão de começar a sacudir o cenário da crítica e dos eventos já em 2017. De acordo com a elvira Samantha Brasil, o grupo está em negociações com diversos Festivais do país para ter representantes em mesas de debate sobre a escrita de cinema. Ela destaca que, mais que quantidade, essa inserção perpassa a questão da qualidade das análises, uma vez que a pouca variedade no perfil dos críticos pode ampliar as chances de ‘vícios de olhar’: “[Precisamos] propiciar uma multiplicidade de olhares sobre o fazer cinematográfico para não termos sempre a questão de gênero influenciando na bagagem de quem analisa os filmes, fato que, infelizmente, constitui o status quo da crítica de cinema, hoje, no Brasil”, opina a crítica.

Além disso, Samantha destaca que há a questão de como os filmes feitos por mulheres acabam ficando em segundo plano, relegados a condição de eterna exceção. “Uma das reivindicações de diretoras que abraçaram nossa iniciativa é que pouco se escreve sobre os filmes dirigidos por mulheres ou, quando se escreve, geralmente há uma certa dificuldade dos homens em abordar temas do dito ‘universo feminino’ sem fetichização ou estereótipos equivocados sobre a representação de mulheres (esse último problema, se dá também quando são analisados filmes dirigidos por homens); Ou ainda, limita-se esses filmes a moldes fora da concepção de uma suposta ‘neutralidade’, como se fossem destinados apenas ao público feminino. Além disso, é importante frisar que a crítica institucionalizada é patriarcal e as questões de gênero acabam, de certa forma, atravessando a escrita”, explicou.

Vale frisar que essa situação não é exclusividade do Brasil, e sim reflexo de um cenário mais global. Nos EUA, por exemplo, a pesquisadora Martha Lauzen apontou em 2016 que apenas 26% das mulheres críticas pertencem a grupos como o Los Angeles Film Critics Association ou New York Film Critics Circle, participantes de curadorias e escolhas de melhores filmes do ano. Já no Rotten Tomatoes, apenas 26% dos críticos mais renomados no influente site, os chamados Top Critics, são do sexo feminino. Essa menor representação das mulheres tem reflexos na crítica e no cinema como um todo, e a atenção a esse problema é o foco das elviras.

Variedade é a chave

Kênia Freitas é umas das participantes do Coletivo Elviras. A jornalista é atuante na área de pesquisa, crítica e atividades de formação em mostras e festivais com foco na representatividade afrodescendente. Ao Cine Set, ela conta que a proximidade com o grupo se deu bem no início, quando as elviras ainda estavam se articulando: “A princípio, o que atraiu foi mesmo a curiosidade e a vontade de conhecer e trocar ideia com outras mulheres críticas. Antes de entrar no coletivo, eu conhecia poucas mulheres críticas de cinema e tinha a falsa impressão de que não existiam muitas. Então, a primeira boa surpresa e que motivou a minha permanência foi a descoberta de que somos muitas, e com produções excelentes”, disse.

A jornalista Camila Henriques é integrante do Cine Set e também uma das representantes da Região Norte no Coletivo Elviras. Para ela, a sensação de isolamento era similar ao citado por Kênia quando o assunto era discutir filmes a partir desse lugar de fala. “Sempre houve questionamentos que eu fazia em relação a filmes considerados ‘de homem’ que eu achava que eram questionamentos só meus”, comentou, citando o exemplo de achar estranho que um diretor como Martin Scorsese não fizesse um filme centrado numa mulher desde os anos 1970, ou que um determinado filme não tivesse nenhuma personagem mulher ou, se tivesse, ela ser apenas um interesse amoroso. “Eu não via isso nos questionamentos da maioria dos críticos homens. Seria injusto dizer que eles todos são assim, até porque às vezes nem é por maldade, e sim pela bagagem (ou falta dela) de cada um”.

A questão da bagagem é justamente o que Kênia destaca quando se pensa num recorte ainda mais específico que é a situação da mulher negra na crítica e no cinema. Sobre isso, a crítica é enfática: sub-representação não quer dizer que há poucas trabalhadoras no ramo. Ela cita a listagem de profissionais no site Mulheres Negras no Audiovisual Brasileiro, no qual podemos conferir o perfil de algumas delas.

Na pesquisa e na crítica, Kênia também destaca a importância da variedade de olhares para os filmes: “A visibilidade das mulheres negras críticas passa pelo combate ao machismo e racismo na área. A importância da diversidade na crítica (e não só) é a possibilidade de construção de mais histórias que, ao saírem apenas do crivo do homem branco e cis, podem dialogar com mais pessoas”. Para tanto, ela acredita que as elviras contribuem na busca dessa pluralidade. “O coletivo torna-se politicamente atento quando percebe não apenas as discriminações de gênero, mas também as raciais, sociais, dentre tantas outras. É uma autoconstrução permanente e também um processo de percepção e dialogo de empoderamento para todas”, complementou.

Essa troca construtiva é apontada por Camila Henriques como o principal ponto positivo da participação no grupo. Segundo a crítica, “O diálogo com as elviras tem sido importante porque me abriu muito os olhos para coisas que eu ignorava ou que não sabia. Também tem me incentivado a escrever mais e assistir mais a filmes de mulheres, nelas centradas ou dirigidos por elas. É uma troca interessante, mesmo porque são mulheres de todas as partes do Brasil”, resume.

Para Samantha Brasil, o coletivo gerou uma reação imediata de “certa desconfiança e até mesmo um leve temor” para os críticos homens, desfeita na medida em que o trabalho expõe como a disparidade afeta a profissão como um todo. “A percepção está mudando e vários colegas têm nos apoiado e incentivado bastante e positivamente”, conta a elvira. “Quando colocamos em números a triste realidade quanto à representatividade de mulheres tanto nos principais veículos de crítica do país, quanto nas Associações de Críticos já existentes, percebe-se que não passa de 10% o contingente de mulheres que consegue se inserir no meio. O que notamos, é que os demais críticos não tinham se dado conta desses números e quando se deparam com eles, também se assustam e compreendem a importância do Coletivo para dar visibilidade aos nossos trabalhos”.

O blog das elviras está em fase de produção, devendo ser lançado em breve. Nele serão publicados dossiês e análises feitos pelas integrantes do coletivo, além de contar com a divulgação de seus veículos. Por ora, o público pode acompanhar um pouco dessas produções a partir da página no Facebook. As mulheres interessadas em participar do coletivo tem duas opções para contato: através de mensagem na página ou via e-mail para mais informações.