Quando Gaspar Noé anunciou um projeto no qual retrataria em filme toda a vivacidade do amor em seus aspectos físicos e emocionais, ninguém duvidou disso. Afinal, o diretor é conhecido por conceder intensidade ao tratamento de seus temas, como bem mostraram “Irreversível” (2002) e “Enter the void” (2009). Quanto maior a expectativa, maior a decepção. “Love” acaba sendo, ironicamente, o longa de aspecto mais datado do diretor.

Quando um não quer, dois não brigam (nem amam)

É fácil traçar um paralelo entre “Love” e “Último tango em Paris” (1972), de Bernardo Bertolucci, nesse sentido. Este último não envelheceu bem, e hoje claramente pode até mesmo ser encarado como misógino por uma parcela do público. Em “Love”, ecos dessa inadequação ressoam por todo o filme, a começar pela escolha de contar a história do casal Murphy (Karl Glusman) e Electra (Aomi Muyock) apenas pelo ponto de vista masculino.

Murphy mora com a companheira Omi (Klara Kristin) e cria um filho de poucos meses de idade, num relacionamento frio e conturbado. A lembrança de Electra volta a todo o momento, em especial a partir de um telefonema da mãe da moça, informando-o que ela desapareceu. É nos flashbacks que passamos a acompanhar como se conheceram e qual a natureza do relacionamento ardente entre os dois, ou pelo menos parte dele, já que Electra permanece no filme como uma peça que não tem encaixe no quebra-cabeça das lembranças do jovem.

O primeiro problema visível na direção de Noé é justamente esse: tratar de um tema que envolve necessariamente (pelo menos) duas pessoas, e dar atenção apenas à perspectiva de uma, o homem. Só é possível amar o outro a partir do olhar que parte de si mesmo, mas imprimir complexidade ao olhar desse outro seria uma proposta mais ousada e mais cabível por parte do diretor dentro de sua proposta de mostrar tudo o que engloba esse sentimento, e ao tratar Electra a partir do estranhamento torna-a um objeto, e não um agente da história em termos de emoção.

Sexo para consumo

Noé traz então o carro-chefe de “Love”: as comentadíssimas cenas de sexo em 3D. Curiosamente, é no ambiente desprovido de paixão que é a casa de Murphy e Omi que o recurso do 3D mais de destaca, reforçando no plano visual a distância entre os desejos dele e o ambiente familiar no qual se instalou. Já nas demoradas cenas de sexo, no qual a cama é o set, a noção de profundidade se perde quase que completamente.

Mais que isso, a profundidade do relacionamento entre Murphy e Electra também se perde nesse espaço. O sexo funciona na trama mais como consumo que como prazer, uma busca desenfreada por acumular experiências diferentes pelo caminho que trilham juntos. Há uma avidez por parte do casal para experimentar novas posições, múltiplos parceiros, novos cenários, tudo isso mostrado de maneira bastante explícita, com direito a vários nus masculinos frontais, algo raro no cinema.

Nesses momentos, os falos disfarçam a exposição rasa dos sentimentos dos protagonistas a partir do choque. Tem-se de tudo: desde um pênis ejaculando em um super-close 3D até uma metáfora (pobre) de um pênis que se dirige agressivamente em direção à câmera (e à cara do espectador) para representar um momento de opressão policial, algo que um estudante de cinema aprendendo sobre montagem com Eisenstein deve achar genial. Não por acaso, o protagonista Murphy é um estudante de cinema, de forma que a montagem de “Love” talvez queira perpassar isso.

Intenso, sutil

Quando fora da cama, o entendimento entre o casal também resulta em algo insatisfatório, que os carrega constantemente em busca de algo diferente que eventualmente interessa mais a eles que ao espectador, que não consegue um nível de conexão mais aprofundado com a história. Assim, as aventuras sexuais de Murphy e Electra não os colocam em comunhão um com o outro, e sim em confronto, o que prejudica a proposta inicial do filme. O desequilíbrio entre eles também se reforça nessa dinâmica, quando os desejos da libido feminina de Electra são colocados sempre sob a perspectiva de Murphy, que repudia e ridiculariza o desejo da parceira de fazer sexo com uma travesti ou de sentir prazer em um clube de swing.

Dessa maneira, podem-se travar ainda paralelos entre “Love” e filmes como “Cega obsessão” (1969), de Yasuzo Masumura, ou “O império dos sentidos” (1972), de Nagisa Oshima. Em ambos, os casais chegam (e ultrapassam) as raias da loucura por estarem tão absortos na completude de seus desejos. O olhar dos protagonistas, unidos, distorce o entorno e resultam em prazer e morte. A agressividade que permeia tamanha sintonia é mostrada em cenas que flertam com o sexo explícito, mas que são emolduradas por sutilezas capazes de torna-las ainda mais chocantes. A soma das partes gera um bloco coeso. Mais que isso: a noção de amor impressa por esses personagens malucos faz sentido para o espectador, ainda que ele não mancomune com as práticas sexuais que aparecem como metáfora de um algo para além do sexo.

Em “Love”, temos partes que não conseguem essa coesão, partes que poderiam muito bem mudar o titulo do filme para “paixão”, “tesão”, ou mesmo o famigerado título que o IMDb exibiu por um tempo: “Transa 3D”. Tanto quem vive um relacionamento amoroso firme quanto quem já viveu um relacionamento intenso, mas fadado ao fracasso, há de admitir que o filme não alcança o objetivo de captar o fluxo de emoções que o sexo carrega quando há outros sentimentos envolvidos. Noé tenta, mas não consegue entregar a sutileza necessária para dar sentido completo ao choque. Até mesmo o nome dos protagonistas traz essa sensação de crueza do filme: Murphy remete à lei de Murphy (se algo pode dar errado, vai dar errado) e Electra remete ao Complexo de Electra (o qual nunca é devidamente explicado no filme). E o público pode se perguntar: e daí?

Ainda que “Love” resulte em um gozo estético interrompido, não se pode negar que Gaspar Noé manteve o compromisso em entregar ao espectador um trabalho visualmente belo, mantendo o padrão que marca sua filmografia. O amor de Noé se dá em ambientes bolorentos, de cores esmaecidas, no qual apenas os lençóis trazem calor à paleta. Nesse sentido, não apenas as cenas de sexo explícito são belamente fotografadas, como também a decadência da relação entre os personagens. O segmento final, no qual Murphy deseja que Electra não tenha se suicidado, por exemplo, usa um recurso simples, mas que poderia muito bem ter encontrado sua equivalência no roteiro pela suavidade ao passar a desolação do protagonista em um momento desesperador. Mérito da fotografia de Benoît Debie, parceiro de Noé nos já citados “Irreversível” e “Enter the void”.

Junto a fotografia, a montagem não linear leva o espectador ao universo de cores quentes e intensas das memórias sexuais de Murphy, trazendo-o ao tempo presente e desbotado. Sem dúvida, uma estratégia inteligente para um roteiro irregular, pois dá conta de retratar as inevitáveis distorções e seleções da mente quando nos lembramos de alguém do passado. Dessa maneira, o recorte da montagem fetichiza o sexo e o representa de forma ideal pela incompletude que o corte traz, contrastando-a com o que o filme tem de mais explícito. Tivesse também o roteiro essa dinâmica, Noé provavelmente superaria seus outros longas.

A trilha sonora, eclética, é outro dos pontos fortes do longa. Curiosamente, ela é um dos elementos que melhor demarca o que o diretor busca passar em relação ao sexo, sendo essencial para cimentar a atmosfera das cenas em que se põe presente. A faixa “Maggot Brain”, do Funkadelic, se destaca na cena de sexo que provavelmente ficará na mente dos espectadores por mais tempo, a do sexo a três entre Murphy, Electra e Omi. Em contraponto a ela, a “Gnossienne nº 3” de Erik Satie faz emergir a noção de perigo e desolação dos personagens. Perigo, aliás, era o nome original do filme quando seu argumento foi concebido por Noé muitos anos antes de “Love”, título esse que talvez fosse mais adequado, já que o filme se dedica mais a mostrar o quanto se pode perder no processo de entrega de um relacionamento.