Com o lançamento do live-action “A vigilante do amanhã” (Ghost in the Shell, 2017), é impossível não fazer uma comparação da obra com a animação na qual ela se baseia, “O fantasma do futuro” (Kôkaku Kidôtai, 1995), de Mamoru Oshii, que se tornou mais popular com o título americano “Ghost in the shell” mesmo. Esta, por sua vez, foi baseada no mangá de Kazunori Itô, ganhando mérito próprio por sua primazia estética e pegada filosófica para mostrar um universo cyberpunk.

É justamente esse mérito que levou a animação a ser tão reverenciada. Dentre os fãs, estavam as irmãs Wachowski, que se inspiraram no anime para dar o tom visto na trilogia que as lançou ao estrelado, Matrix. Em termos estéticos, é possível observar essas influências de cara na direção de arte, com a utilização na trilogia de elementos que enfatizam a presença da tecnologia como determinante do cotidiano da sociedade retratada na Matrix.

A fotografia dos filmes das Wachowski também bebe da fonte do anime de Oshii. Logo no início, a hoje icônica “chuva de números” verdes que abre os filmes é quase uma cópia dos créditos iniciais de “O fantasma do futuro”. Ao longo da trilogia, muitas foram as cenas do anime usadas como referência para a coreografia das cenas de luta e como elas seriam apresentadas visualmente, fato esse comentado pela equipe do filme em extras e entrevistas da época.

Indiretamente, o modo de apresentar a ação em “O fantasma do futuro” ajudou a impulsionar o desenvolvimento da tecnologia do efeito Bullet Time, que os filmes das Wachowski lançaram como tendência a partir do final dos anos 1990. A inspiração é compreensível, pois a animação de Oshii, hoje com mais de vinte anos, permanece altamente atual em sua concepção de cenas de ação, que se tornam ainda mais impactantes por serem entrecortadas por momentos melancólicos e divagações filosóficas dos personagens.

Ação que pensa

Esse ponto, aliás, é outro forte de “O fantasma do futuro” que foi retrabalhado na trilogia Matrix. A natureza da consciência humana (chamada na animação de “ghost“) e o entendimento da separação entre alma e corpo material são temas que permeiam toda a animação. Por sua vez, a relação dessa dualidade com a tecnologia é até hoje curiosa no anime, uma vez que não há nele a apresentação de um conflito pelo fato de muitos humanos serem ciborgues, com partes do corpo compostas e melhoradas pela delicada tecnologia de ano de 2029. A oposição alma-corpo permite que este último, robótico, seja apenas o invólucro de algo que marca a verdadeira individualidade humana. Assim, o foco maior é em refletir sobre as novas possibilidades trazidas dessa mudança e como ela nos transforma como pessoas.

É uma visão que vemos parcialmente reutilizada e parcialmente negada na trilogia Matrix. Por um lado, o corpo de Neo (Keanu Reaves) e seus companheiros é apenas uma “embalagem” que pode ser usada de formas fantásticas por conta do treinamento e da consciência de viver num plano de aparências (a Matrix em si), sendo necessário apenas preparar a mente para enfrentar a “sensação” de morte nesse universo ilusório e não morrer de susto, literalmente, se uma bala atingi-lo na Matrix, por exemplo; por outro lado, a consciência pode perecer se o corpo existente no futuro, fora da Matrix, for machucado ou adoecer.

Resumindo, a oposição mente-corpo novamente entra em jogo na trilogia das Wachowski. A diferença maior é que a mediação da tecnologia é bem mais conflitante nela que em “O fantasma do futuro”. Esse é justamente um elemento que diferencia a obra japonesa, uma vez que ela parece dialogar de forma mais realista com as mudanças que vemos hoje na maneira com que lidamos com a tecnologia, integrando-as cada vez mais em nossas vidas e fazendo isso ser comum e mesmo necessário. Não por acaso, num trecho da animação, um personagem diz que o DNA nada mais é que uma forma de consultar informação, agindo de forma análoga aos códigos de um programa de computador.

Para embasar todas essas discussões, a trilogia Matrix e “O fantasma do futuro” bebem de fontes semelhantes, com o último novamente guiando o primeiro. Há, claro, a conversa das obras com a literatura de ficção científica como o “Neuromancer” de William Gibson ou o “O fantasma da máquina” de Arthur Koestler, além da bibliografia de Philip K. Dick, dentre outros; mas há também referências ao trabalho de Descartes, Hegel, Heidegger e Baudrillard no campo da filosofia, além da influência da religião cristã e filosofia budista (estas últimas, muito mais proeminentes em Matrix). O mito da caverna de Platão também é uma associação fácil de fazer com o filme das irmãs Wachowski.

Dessa maneira, a sacada de “O fantasma do futuro” foi misturar em uma trama policial os momentos de ação a colocações profundas: quem nós somos? O que define nossa individualidade como seres humanos? O que é a realidade e qual o nosso papel no mundo? Essas e outras indagações são entrecortadas por tiros, explosões e perseguições, dando densidade real a uma trama que, sem elas, resultaria em um filme de ficção científica genérico.

A inspiração tomada daí pelas Wachowski foi justamente o que permitiu que a trilogia Matrix seja até hoje relevante na recente história do cinema. Revendo os filmes delas hoje, já é notável que alguns detalhes de atuação, montagem e mesmo alguns efeitos já estão envelhecidos. Porém, a profundidade trazida pelo diálogo entre ação e filosofia permanece extremamente instigante e ainda nos diz muito sobre o hoje. Agora só o teste do tempo para saber se “A vigilante do amanhã” conseguirá a mesma proeza que o original e a “cópia” bem sucedida.