Cristiano Burlan é um diretor de cinema e teatro que diz ter sido salvo pela arte, e falando com ele, realmente é possível acreditar nisso. Nascido em Porto Alegre em 1975, chegou a morar em Barcelona, onde dirigiu o grupo de cinema experimental super-8. Em São Paulo, esteve à frente do grupo de teatro A Fúria. Tem em sua filmografia mais de 15 filmes, entre ficções e documentários. É professor (e ex-aluno) da Academia Internacional de Cinema – AIC.

Sua última ficção, Amador, estreou na 13a Mostra de Cinema de Tiradentes. Seu documentário mais recente, Mataram Meu Irmão, foi o grande vencedor do É Tudo Verdade 2013, angariando os prêmios de Melhor Filme do Júri Oficial e da Critica, do 40o Festival SESC de Melhores Filmes como melhor documentário do ano e do Prêmio do Governador do Estado de São Paulo como melhor filme.

Atualmente finaliza seu novo longa de ficção, Hamlet. Em Manaus para ministrar um curso aos alunos de Audiovisual da Universidade Estadual do Amazonas, Burlan conversou com o Cine Set sobre cinema, sua vida, críticas e arte.

Cine Set: Sua trajetória como diretor é bem particular, já que, de 16 filmes, só realizou um com incentivos fiscais. No que isso ajuda e no que atrapalha a realização dos filmes?

Cristiano Burlan: Bom, eu não costumo colocar nesses extremos, do que ajuda e do que atrapalha. Meu desejo é o de realizar filmes. Eu tento os editais, o fato de não ser contemplado não me impede de realizá-los. Acho que esquecemos um pouco da própria história do cinema brasileiro e latino-americano: a falta de recursos é a nossa estética. Parece que vivemos num momento meio aburguesado do cinema, acreditando que existe uma indústria. Eu não acredito, acho isso uma falácia. Acho os editais importantes, mas ao mesmo tempo, não se pode ter um mercado de cinema, uma “indústria”, a qual eu não acredito, fomentada exclusivamente pelo poder publico. Tem que ter outras opções.  Quais seriam essas opções? Tem várias, como o investimento direto de possíveis investidores, fundos de investimento. E outras maneiras de se realizar. A própria história do cinema nos mostra que muitos filmes foram feitos com parcos recursos, com quase nada. A pobreza de recursos não pode ser desculpa, também, para se fazer filmes menores. Agora, se você quiser discutir o que são filmes menores, vamos entrar noutra discussão… Mas claro que filmar sem grana cria muitas dificuldades. Ao mesmo tempo, essa resistência que sempre tive na minha vida para realizar filmes me fortalece de algum modo. Então não posso olhar pra trás, quero me expressar através do meu oficio que é o cinema, tendo ou não recursos, próprios ou não. E continuo realizando.

Cine Set: Em seu filme mais novo, o longa de ficção Hamlet, você dirige o também crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, entrevistado recentemente pelo Cine Set. Como se deu a aproximação entre vocês?

Burlan: Meu Hamlet não é uma adaptação literal. Tenho uma ligação muito intrínseca com a obra de Shakespeare, pois vim do teatro. Shakespeare permanece atual depois de 450 anos, pois fala de três coisas inerentes ao ser humano: amor, ódio e separação. Mas isso também me trouxe uma reflexão sombria: se ele permanece atual depois de 450 anos, isso quer dizer que nós evoluímos muito pouco. Realizando o filme, eu descobri outra coisa, que novamente eu volto a um tema muito caro à minha personalidade, minha relação com a morte e com a tragédia familiar. Não era a tragédia da minha família, mas ainda assim era sobre morte e tragédia.

Quanto ao Bernadet, nós éramos vizinhos no mesmo prédio em São Paulo. Tínhamos amigos em comum, e duas semanas antes de eu estrear no Festival É Tudo Verdade com meu ultimo documentário Mataram Meu Irmão, nos encontramos e ele pediu para eu passar meus filmes. Passei os últimos, Sinfonia de Um Homem Só e Mataram Meu Irmão. Eu estava com muitas duvidas na época, porque no final deste último tem fotos do meu irmão morto, fotos dos autos do processo. Meu medo era de ser criticado por me expor, por expor a morte do meu irmão.

Sobre o Sinfonia, o Bernadet só escreveu uma frase no blog dele, e ele não postava nada há tempos: “É um filme magnífico e Cristiano Burlan é  herdeiro direto de Ozualdo Candeias”. Essa frase me comoveu. E sobre o outro, ele não escreveu, me chamou e disse que gostou muito, conversamos por umas duas horas. Falei pra ele da minha insegurança em relação ao final, e ele respondeu: “É o momento mais poético do filme, ele parece um Cristo crucificado, ali você purifica o seu irmão”. Isso me trouxe uma serenidade.

Depois, nossa relação foi se estreitando. Ele participa do meu filme Amador, mas não como ator, como ele mesmo. O filme é uma metalinguagem com um diretor em crise, e na cena ele visita um critico que tinha gostado dos dois últimos filmes dele. Depois da cena, o cara pergunta a ele “O que é cinema?”. Bernadet fica em silencio por um tempo e diz “Preciso responder a essa pergunta? Acho melhor não”. Então perguntei a ele: “Mas e aí, você não tem resposta?”, e ele disse “Até tenho, escrevi um livro sobre o que é cinema, mas achei que essa pausa dramática era mais interessante para o filme”. Aí pensei, o cara virou ator mesmo!

Depois o convidei para Hamlet. Ele não gosta muito do Amador, fez criticas severas, e falou que eu poderia cair novamente no negócio da metalinguagem. Aceitei as criticas dele, mas perguntei se ele estava no filme ou não. Ele topou e fez o papel do Fantasma. E já estamos ensaiando um novo filme, talvez eu filme esse ano ainda, e também uma participação dele no teatro. Ele é um parceiro muito estimulante. Não estou trabalhando com ele porque ele é o grande crítico Jean-Claude Bernadet, que faz parte da história do cinema. Isso é importante, claro, mas em nenhum momento fico falando essas coisas com ele. O que importa para mim é que ele é um ator agora, e não é um museu. Ele é alguém conectado no seu tempo, trabalha com vários realizadores, é antenado com o que está acontecendo agora no cinema brasileiro. Para mim, ele é um amigo e parceiro de trabalho.

Cine Set: Você concedeu uma longa entrevista a Jean-Claude Bernardet no ano passado e relatou sua vida na periferia, problemas familiares e a violência sempre presente. Como acha que essas situações tão extremas influenciaram sua sensibilidade como artista?

Burlan: Posso ver por dois prismas. Primeiro, o de um pobre que foi salvo pela arte, e também o de uma pessoa que teve muita sorte na vida e lutou muito. Não consigo ter um distanciamento para analisar isso, mas acho que quando uma pessoa passa pelo que eu passei, isso acaba interferindo na sua personalidade. As coisas que eu vi me deixaram uma marca indelével e isso interfere diretamente na produção artística. Mas em relação ao documentário sobre o meu irmão, por exemplo, me perguntam se usei o filme como uma terapia freudiana, uma sublimação freudiana. Para mim, acima de tudo, é cinema. As melhores críticas que recebi em relação ao filme foram sobre essa consciência cinematográfica. Porque eu não estava falando apenas do assassinato do meu irmão, estava falando dos assassinatos de outros irmãos. O filme atingiu uma potência por ser algo universal, por falar de uma questão que hoje parece banal. Você liga a TV no jornal e vê várias pessoas sendo assassinadas por armas do Estado. Virou uma coisa comum, mas para quem está dentro, sabe que aquela morte não é só um número, é uma fotografia num álbum de retratos, é uma memória. Mas não costumo usar minha infância, minha pobreza e toda a relação que tive com a violência como bandeira. E também acho que não se mede a dor. Você pode atravessar a rua e topar numa pedra, e isso te afetar de maneiras mais profundas do que todas as mortes que presenciei.

Cine Set: Documentários como Construção [sobre a morte do pai do diretor] e Mataram Meu Irmão [sobre o assassinato de seu irmão] não poderiam ser mais pessoais você. Como lida com as críticas a essas obras depois de passar por tudo isso?

Burlan: Não se pode agradar a todo mundo. É muito difícil lidar com uma critica que destrói. Mas acho o trabalho da crítica muito importante, embora tenha se banalizado um pouco. Ao mesmo tempo em que houve uma democratização dos meios de críticas através da internet, vejo outro lado, uma crítica meio superficial. Ao mesmo tempo, vejo também na internet uma nova crítica que é super-cinéfila, que tem uma cultura cinematográfica tremenda e faz um trabalho potente. Em relação a critica de filmes que são pessoais, elas criticam o filme, independente se há algo próximo a mim ou não. Mas é crítica. Quando se emite uma opinião, há a reação, não tem como não lidar com isso. Algumas são interessantes, e não falo apenas das que falam bem do filme. Algumas realmente te fazem refletir sobre o filme, te mostram outra perspectiva que você não tinha encontrado. No caso dos documentários pessoais, no É Tudo Verdade eu fui vaiado com Construção em 2007, e depois eu voltei em 2013 com Mataram Meu Irmão e ganho o prêmio principal e o prêmio da crítica. É estranho isso, e me trouxe um ensinamento. Eu não me empolgo muito nem quando me dão prêmios e as críticas são elogiosas, nem quando me vaiam e acabam comigo, o que me importa é a minha relação com a obra, e eu vou seguindo.

Cine Set: Você também é professor na Academia Internacional de Cinema em São Paulo. Como encara o ofício de repassar algo de sua experiência para os alunos? Acha que cinema é algo que se ensina?

Burlan: Sabe que nem sei como vim parar nisso? [risos] Eu não sou professor, eu “estou” professor, e dou aula há sete anos. Não sou graduado, vou receber um título de “Notório Saber” agora. A academia me interessa muito, sempre tive pretensões de estudar na França. Sou autodidata, e uma das primeiras coisas que digo quando pego uma turma nova é que acho impossível transmitir conhecimento.  Você pode falar de uma relação de experiência mas, especificamente tentar ensinar alguém a fazer cinema, acho isso abominável. Cinema não se ensina, se aprende na prática. O que tento transmitir é a minha experiência de ter feito muitos filmes – embora sejam poucos em comparação com outros – e, principalmente, uma reflexão a partir da dúvida. Se há um instrumento no cinema que acho muito potente, é a dúvida, não a certeza. Mas em todo caso, acho uma grande responsabilidade ser professor.

Cine Set: Ano passado você ministrou uma oficina no Amazonas Film Festival e agora um curso aos alunos de Audiovisual da UEA. Como começou essa relação com Manaus?

Burlan: Muitas pessoas daqui vão fazer o curso da AIC e tiveram contato comigo e com as minhas aulas. Acabei estreitando relações com a cidade e os convites para cá surgiram a partir disso. Mas sempre tive um desejo, meio turístico até, de querer filmar aqui. Já filmei no Pará, no baixo Tapajós, num documentário sobre a Cabanagem. Mas gostaria muito de fazer uma ficção aqui. É uma cidade muito atraente… esse calor, essa luz dura e tropical que acho linda pra se fotografar, uma luz indomável. Me sinto em casa aqui, muito confortável mesmo.

Cine Set: O que conhece da produção audiovisual de Manaus?

Burlan: Conheço o Sérgio Andrade pelo A Floresta de Jonatas, concorremos em alguns festivais juntos. Conheço um pouco da obra do Silvino Santos e um pouco da produção de curtas-metragens. Quando estive aqui no Festival em 2013, fiz questão de assistir à produção local. Estreitei relações com alguns realizadores daqui e com a turma que está na universidade também. Eles têm me apresentado muita coisa.

Cine Set: Os realizadores locais enfrentam dificuldades similares às suas, de conseguir verba e divulgar suas produções, fora a nossa distância do eixo Rio-São Paulo. Que conselhos dá a eles para persistirem no ofício?

Burlan: É difícil responder isso… Como estava até falando na aula, não existe situação ideal para se realizar, para se produzir. Se só houvesse situação ideal, o cinema não seria um meio para se expressar, não seria arte. A resistência, na nossa profissão, é a força motriz para isso. Acho que tem que se aprender, quando se realiza você vai aprendendo… Mas também tem outra coisa que percebi, que é o olhar um pouco exótico. Vem o “diretor-turista” filmar aqui e acaba transferindo um pouco disso. Já vi que a produção local já não é mais assim, tem muitas coisas diferentes…  Sei que parece muito pretensioso da minha parte dar conselho pra alguém que é daqui, mas talvez seja isso: virar a câmera para si mesmo e menos para o que está sendo feito lá fora. É como aquela frase do Leon Tolstói: se você quer falar para o mundo, você tem que falar da sua aldeia. Mas como se fazer isso, aí é que são elas…