No ano em que seriados nacionais como “Bandidos na TV” e “Coisa Mais Linda” se tornaram produções populares na Netflix até esquecemos que, três anos atrás, a primeira original brasileira do streaming lutava para cair no gosto do público. A pioneira “3%” enfrentou grande resistência em seu próprio país para conseguir emplacar suas temporadas seguintes e motivos não faltavam devido a seu primeiro ano nada impressionante. Reafirmando a relevância de sua temática e contexto social, o seriado se reergueu no segundo ano chegando, agora, ao terceiro ano com uma trama interessante, capaz de se renovar cada vez mais sem perder o atrativo de retratar um Brasil não tão distante.

Um grande acerto inicial desta temporada é a criação de um novo cenário, denominado como “A Concha”. Assim, a primeira temporada retrata o processo de seleção até o Maralto da mesma forma que a segunda mostra a vida no Continente e a terceira dá continuidade a esta lógica. Essa escolha se torna extremamente importante para construir o futuro da produção assim como seu desfecho.

Fundada por Michele (Bianca Comparato) e Fernando (Michel Gomes), ‘A Concha’ surge como uma alternativa ao sistema imposto pelo Maralto, se tornando um lugar para os habitantes do Continente viverem. Sustentado por uma tecnologia limitada, ‘A Concha’ perde sua geração de água e alimentos, forçando Michele a diminuir drasticamente a quantidade de pessoas do local. Para tanto, ela opta por uma seleção para determinar quem continuará a morar na Concha até que possa abrigar a todos novamente. Neste caminho, os antigos conhecidos de Michele surgem como participantes da seleção casos de Rafael (Rodolfo Valente), Marco (Rafael Lozano) e Joana (Vaneza Oliveira). Já no Maralto, os inimigos da protagonista permanecem os mesmos, porém, com o objetivo de vê-la fracassar ao reerguer seu projeto.

Apesar da história avançar conforme suas escolhas, novamente, Michele se torna uma protagonista descartável. A personagem de Comparato ainda se ressente da ausência de Fernando, o qual ainda dividia cenas significativas com ela, levando-a ficar sozinha e sem grandes momentos.

A morte de Fernando inclusive foi uma situação totalmente inesperada: o ator Michel Gomes sequer aparece na temporada e, apesar de seu personagem não fazer falta para a história como um todo, é uma pena ver sua trajetória ser encerrada de forma tão abrupta, principalmente, após seu protagonismo nos anos anteriores. Por outro lado, Joana, Rafael e Marco possuem construções mais interessantes e decisivas para a trama.

Enfoque em bons personagens

Após deixar claro para o público os problemas do universo distópico nas temporadas anteriores, “3%” mergulha na inter-relação de seus personagens, utilizando diálogos e situações para ressaltar o discurso social forte que a produção carrega. Um bom exemplo disto é a dinâmica entre Rafael e seu irmão Artur (Léo Belmonte): ambos são habitantes da Concha e, na primeira etapa da seleção, Artur burla a ordem de Michele assim como Rafael trapaceou na primeira prova de seu processo no Maralto.

Da mesma forma, “3%” utiliza Joana, a única que ainda acredita no grupo de resistência “A Causa”, como uma ótima forma de dialogar entre diferentes grupos de personagens. O mais interessante em sua construção é notar o quanto ela fica enganada por seu desejo de defender a causa, da mesma forma que Michele em perpetuar a Concha.  Desta forma, as duas criam objetivos diferentes para satisfazer um mesmo desejo: destruir o Maralto e seu sistema.

Joana acredita que isto só pode ser feito com a destruição física do local, enquanto Michele defende a descredibilização ideológica do Maralto. No fim, descobrimos que apenas a combinação destes dois fatores pode se transformar em uma mudança significativa, criando um gancho bem interessante para uma futura temporada.

Toda essa trama é acompanhada de uma trilha sonora bem presente e simbólica, novamente, apenas uma música da temporada tem letra, a qual, para um bom espectador, substitui qualquer diálogo necessário. A utilização de sons mais sugestivos e até mesmo do silêncio inconveniente e perturbador ressaltam esta atenção maior destinada à trilha.

Meritocracia e um processo (in)justo

 

Mesmo sem apresentar uma trama extremamente envolvente, a terceira temporada possui roteiros muito bem construídos, considerando principalmente seus efeitos a longo prazo na série. O acréscimo de uma seleção por Michele torna-se um grande trunfo da temporada: mostra que apesar de possuir um objetivo diferente, a seleção da concha utiliza os mesmos meios do Maralto, resultando em um processo injusto.

Desta forma, entre escolhas da protagonista e atitudes duvidosas dos personagens, o seriado sugere um grande descrédito ao discurso sobre meritocracia. Esta questão sempre é trazida à tona quando as pessoas afirmam que “mereceram” continuar na concha, quando, na verdade, as falhas nas provas começavam pela própria corrupção desses participantes.

A mensagem do seriado é muito direta e bem colocada em uma temporada sem grandes destaques ou momentos memoráveis, mas capaz de manter uma boa continuidade para a série. Basicamente, “3%” age de forma segura no terceiro ano, tentando manter seu padrão de qualidade, uma característica que, por si só, já é bem trabalhosa e digna de créditos.