Em 2018, lembro-me de discutir com meu então mentor do programa para formação de críticos do Talent Press Rio, o português Luis Oliveira. O tópico: “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee. Na ocasião, ele defendia que o filme não era bom por ser isento de qualquer sutileza na abordagem de seu tema central, o racismo. Eu concordei, mas também destaquei que, num mundo que havia elegido Trump e Bolsonaro, talvez não fizesse mais sentido ser sutil ao abordar certos temas, raciocínio esse que segui em minha crítica do longa.  

Quatro anos depois, “A Hespanhola” me faz recordar dessa conversa. O novo curta de Francis Madson (“Jardim de Percevejos” e “No Céu da Boca Cresceu Saturno”) foi produzido durante a pandemia e se passa durante duas – a da Gripe Espanhola que dá título à obra e a da Covid. Abraça, a partir dos dois períodos, um combo que mistura costumes, política e sátira ao apresentar um casal que aparentemente está nos idos de 1918 lendo as primeiras notícias sobre a Gripe, mas que, da porta para fora, depara-se com os anos 2020. A partir daí, tudo é delírio. 

Mas o motivo de me fazer traçar um paralelo entre o curta de Madson e o longa de Lee é justamente em como ambos optam por ignorar qualquer noção de sutileza: ambos dizem exatamente o que querem dizer, seja através do ataque ao conservadorismo e negacionismo no primeiro, seja na reconstrução histórica do racismo no segundo, pouco se servindo do espaço semiótico que um “dizer sem dizer” traria a essas obras. 

Não que esse “A Hespanhola” não conte com metáforas, óbvio. Elas, aliás, são gritantes: o casal negacionista de 1918 é um espelho dos otários que vemos com máscara no queixo em selfies nas redes sociais desde 2020 – quem sabe, sequer pertencem a outra época mesmo, sendo mais uma “sacada genial” do curta; a morte do Presidente Rodrigues Alves por um vírus é o nosso desejo nada secreto para certos líderes presidenciais (realizado por um “guru” recentemente); o personagem do marido puxa-saco dos ingleses e literalmente lambe a tela de uma tevê com o rosto de Jair Bolsonaro; etc, etc, etc, não vamos contar o filme todo aqui. 

Tais pontos são apenas para dizer que tudo no curta nos é apresentado para “pegar a referência”, concordar com ela e seguir adiante. O que não é de todo ruim. Temos, por exemplo, as soluções inventivas para o cenário e a vibe onírica da inserção do personagem masculino nas ruas da Manaus de hoje – e como é bom ver nossa cidade indo além dos cantinhos quase cenográficos do Centro Histórico.   

É justamente nesse momento que “A Hespanhola” adquire potência. Leva-nos fundo num pesadelo que vai das ruas para uma celebração mórbida de camisas verdes, e depois para uma espécie de umbral, no qual o personagem se depara imagens da fossa que testemunhamos diariamente durante o enfrentamento da pandemia (se é que podemos chamar isso de enfrentamento). Aí sim o filme realmente mostra como a falta de sutileza pode dialogar com a brutalidade do que passamos a viver no decorrer desses últimos anos, e é quando finalmente ela consegue ser efetiva em termos de gerar impacto emocional ao curta, ao invés de apenas alimentar uma atmosfera de lacração que, tal como um tweet que hitou, é feita de nós para nós, mas não necessariamente penetra algo fora da bolha. 

Com isso, é no choque da alegoria com nossa realidade absurda que está a força de “A Hespanhola”, com a última sendo aquilo que realmente nos embrulha o estômago. Nesse sentido, as atuações e diálogos exagerados nada acrescentam ao filme, assim como as sequências acompanhando a mulher conservadora são quase todas dispensáveis, em especial o quiprocó com o instalador de cabo da MET (heim, heim, sacou a referência? Esperto, né?). Esses elementos dão ao espectador a impressão de que estamos vendo uma peça teatral muito legal, mas que por algum motivo virou um filme. 

De maneira geral, temos em “A Hespanhola” pontos altos e baixos, com erros e acertos comuns à filmografia brasileira dos últimos anos na busca por retratar algo de nossos tempos. E será importante, em longo prazo, uma análise mais distanciada desses filmes no futuro, já desaquecidos do calor do momento, e como as produções do Amazonas se inseriram nesse contexto. É certo que, hoje daqui a alguns anos, ao se falar de um filme de Francis Madson, de tédio, você não morre.