A narrativa construída em cima do cinema de temática queer, que abarque experiências de corpos travestis quase sempre perpassa pelo caminho da dor. Até porque, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Então, é de se esperar que o cinema como lugar de construção de novos imaginários seja uma plataforma de denúncia contra o silenciamento desses corpos. 

Assistindo “Ana Rúbia”, documentário presente na programação do 5° Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte, acompanhamos alguns instantes da rotina de Ana Rúbia, escritora travesti que se prepara para lançar o livro Memórias Escolares de Travestis.

A primeira impressão que poderíamos intuir do documentário seria que a direção de Diego Baraldi e Íris Alves Lacerda seguisse por uma linha narrativa marcada pelo apagamento desses corpos. De certa forma, mesmo que indiretamente, o documentário faz isso, mas muito sutilmente. De modo bem distante e velado.

O que chama a atenção é o foco dado na relação que Ana Rúbia estabelece com o espaço que ocupa, como quando ela aparece com uma amiga em um momento de afeto e cuidado, momentos em que ela está cuidando do pai, ou quando ela vai se refrescar em um riacho, além de uma saída com as amigas.

O documentário, apesar de mostrar que Ana se prepara para lançar um livro de temática delicada e que se relaciona diretamente com sua vida, seu corpo e portanto sua existência, faz um balanço com uma vida comum, marcada também pelo afeto e pelo cuidado, lugares ainda não muito explorados no audiovisual brasileiro quando tratam das existências de corpos LGBTQIAPN+.

Acho importante marcar isso aqui, pois, a princípio, houve um estranhamento da minha parte por ver uma escritora travesti com uma vida cotidiana não muito diferente de qualquer uma que eu conheço, e esse estranhamento veio de um olhar viciado e marcado pelo consumo de conteúdos relacionados ao tema do documentário, cuja maioria esmagadora é sempre tratada com viés de dor e sofrimento. 

Poderia facilmente associar “Ana Rúbia” com a série Heartstopper (Netflix), em que vemos a relação de um casal de adolescentes descobrindo e experienciando sua sexualidade de forma natural, sem uma abordagem traumática para quem assiste. É importante frisar que o documentário não foge e não isenta a existência dessa realidade cruel, marcada pelo apagamento desses corpos, mas, ao passo que foge de um lugar comum, já muito explorado (e também necessário), propõe outro exercício, o de pulverizar nosso imaginário com leveza e afeto.