O cineasta Zack Snyder adora violência. Ora, ele foi o sujeito que fez o Superman torcer o pescoço de um cara e, uma cena depois, fazer uma piadinha. Ele fez o Batman jogar caixotes e carros em cima de bandidos e fez a Mulher-Maravilha pulverizar um cara e inspirar uma garotinha ao mesmo tempo. Era perceptível o seu deleite visual quando ele mostrou espartanos trucidando persas em 300 (2007). Ora, a violência estava lá no seu primeiro longa, Madrugada dos Mortos (2004), seu remake do clássico O Despertar dos Mortos (1978) de George Romero que trocou os zumbis lentos pelos rápidos e a crítica social pela ação desenfreada.

Snyder passou por uma fase ruim nos últimos anos: depois de ser elogiado pelos seus primeiros trabalhos, se aventurou como arquiteto do universo dos super-heróis DC no cinema, onde a sua visão não foi tão bem aceita. O Homem de Aço (2013) e Batman vs Superman (2016) dividiram opiniões, Snyder começou a ter desavenças com o estúdio Warner, sua jovem filha Autumn cometeu suicídio e ele então deixou o projeto Liga da Justiça, que foi completado por outros e foi aquela coisa de que todos lembramos. Há alguns meses vimos a versão dele de Liga da Justiça, um filme do qual se pode até reclamar, mas que representava 100% a visão autoral de Snyder. Mesmo feliz por lançar o filme, percebia-se pelas suas entrevistas o seu cansaço por lidar com o estúdio e toda a maquinaria que cerca os filmes de super-heróis. Ele quis dar uma relaxada. Quis voltar a matar gente na tela sem ser criticado. E qual o tipo de filme em que se pode matar muita gente e não ouvir reclamação? Ora, um de zumbis.

Army of the Dead: Invasão em Las Vegas é o seu descanso depois de aguentar a Warner e alguns fãs de HQs. Foi produzido pela Netflix, que deu a ele e à sua esposa Deborah, produtora, liberdade total. Snyder é o diretor de fotografia do filme e foi também o operador de câmera. De certa forma é o seu Roma (2018): se depois de fazer um dos Harry Potter e Gravidade (2013) Alfonso Cuáron voltou para a menor escala com um projeto pequeno e pessoal, Zack Snyder fez o mesmo aqui – claro, do seu jeito – criando um filme maluco repleto de citações às suas influências cinematográficas e com sangue, ação e humor. E humor era algo de que seus filmes com os heróis DC precisavam desesperadamente.

No filme, Las Vegas foi dominada por uma praga zumbi que transformou todos os seus habitantes em mortos-vivos. A cidade foi isolada e murada – tal e qual Fuga de Nova York (1981) de John Carpenter. Quando ela está prestes a ser destruída por um míssil nuclear – no 4 de julho, para aumentar os fogos de artifício! – um grupo de mercenários liderados por Scott Ward (Dave Bautista) se infiltra na cidade para recuperar uma fortuna escondida no cofre de um cassino. O filme é também o Onze Homens e um Segredo (2001) do Zack Snyder. Com zumbis e armas.

RESGATE DA FAGULHA INICIAL

Army of the Dead começa bem, com diálogos engraçados e uma sequência de créditos de abertura criativa e irreverente – Snyder se mostrou um artesão desse tipo de abertura que hoje é praticamente uma arte perdida, exceto pelos filmes de James Bond. Um dos melhores momentos da carreira do cineasta continua sendo a abertura de Madrugada ao som de Johnny Cash e com imagens do fim do mundo. Army of the Dead tem a nova versão daquela abertura, mas com breguice, fonte cor-de-rosa para os títulos e sarcasmo. É o momento mais legal do filme.

E claro, quando a ação começa o filme é divertido – o longa de Snyder mais simplesmente divertido e sem parecer deprê desde… Bem, desde Madrugada. Cineastas muitas vezes sentem a necessidade de voltar ao começo, ao básico, para relaxar, recarregar as baterias, e esse obviamente foi o interesse do diretor aqui. Ele é auxiliado nisso por um bom elenco: Bautista, com seu ar de “triste homem forte”, carrega o filme; Garret Dillahunt se diverte com um sujeito obviamente “traíra” dentro da expedição; Matthias Schweighöfer faz o nerd engraçado com a missão de abrir o cofre e a carismática Tig Notaro rouba algumas cenas como a “pessoa do helicóptero”. Mas mesmo eles perdem para o tigre zumbi, “sobra de Siegfried & Roy” que permite a Snyder colocar o seu toque demente na recriação da cena mais famosa de O Regresso (2015).

Snyder também reverencia a si mesmo na cena do elevador – copiada de Madrugada – e chupa muitos dos elementos narrativos de Aliens: O Resgate (1986) de James Cameron. Personagens, diálogos e situações inteiras vêm do longa de Cameron, só falta a Snyder ter o talento narrativo do seu ídolo. Afinal, seus personagens são esquemáticos demais e o filme é muito raso. Apesar de sabermos que o diretor está se divertindo e de o filme ter realmente boas cenas, ele acaba não sendo tão legal quanto poderia porque, com 2h28 minutos, é simplesmente inchado demais. Snyder nos faz esperar muito pela “parte boa” e, além disso, parece não saber mais pensar pequeno, diminuir as coisas e acrescentar leveza. Apesar de que só na Hollywood maluca de hoje um filme como Army of the Dead pode ser considerado um esforço menor. Apenas quando se leva em conta os trabalhos imediatamente anteriores do diretor é que o absurdo da situação fica claro.

Porém, nota-se claramente que Zack Snyder realmente leva a sério as cenas entre o herói e sua filha (Ella Purnell). Os atores atuam bem nas cenas entre eles e o diretor as filma com uma delicadeza quase insuspeita, em se tratando de quem é. São os raros momentos em que Army of the Dead fica um pouco menor, e isso é compreensível devido ao que Snyder e sua família passaram. Mesmo assim, a exemplo do seu recente Liga da Justiça, Army of the Dead não deve conquistar novos admiradores para o diretor. É excessivo, raso, um filme de cineasta “meninão” mesmo – eu particularmente teria mais simpatia por ele se se assumisse como meninão, ao invés de querer posar de adulto. Ainda assim, é a primeira vez em muito tempo em que não é uma tarefa tão pesada assistir a um filme de Zack Snyder. Brincando de cinema e relaxando com sangue e tripas, ele até recupera um pouco da fagulha que tinha no início da carreira. Bem, no fim das contas, cada pessoa relaxa do seu jeito…

* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.

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