Em 1954, o psiquiatra Fredric Wertham (1895-1981) publicou seu livro A Sedução do Inocente, resultado de um estudo produzido ao longo de vários anos sobre a relação entre as histórias em quadrinhos e o aumento da delinquência juvenil nos Estados Unidos. No livro, que representou o maior ataque à indústria norte-americana de comics em toda a sua história, Wertham tinha como principal alvo as HQs sobre crimes e de terror, mas os super-heróis também não escaparam da sua mira. Para ele, a Mulher-Maravilha era uma lésbica e o Superman um fascista. E, naquela que foi a sua grande contribuição à cultura mundial e o maior motivo pelo qual falamos dele até hoje, Wertham foi também o primeiro a afirmar que Batman e Robin, a dupla dinâmica dos quadrinhos, eram gays.
O problema de Wertham era que a sua proposta era muito enviesada – é como se ele já tivesse pronta na sua cabeça a hipótese que queria comprovar e, então, foi atrás somente dos dados a serviço de corroborá-la. Infelizmente, muita gente o levou a sério na época, por mais que hoje pareça absurdo pensar que ler HQs possa transformar crianças em delinquentes ou ter qualquer influência na orientação sexual. E o estrago foi feito: pais queimaram revistas em fogueiras, a indústria foi investigada pelo Congresso e teve de se reestruturar, editoras faliram, a criatividade dos artistas de quadrinhos foi inibida por várias décadas e, acima de tudo, a história sobre Batman e Robin pegou. Tanto que, depois dessa polêmica, ao longo dos anos, os roteiristas das HQs encheram a mansão Wayne de outros personagens – algumas femininas – para compor a Bat-família e mitigar as insinuações sobre Bruce e Dick Grayson morando juntos.
O que nos traz a Batman & Robin, longa dirigido por Joel Schumacher e lançado em 1997. É uma obra cercada de hipérboles: um dos piores filmes de super-herói de todos os tempos, senão o pior; o filme que matou uma das franquias mais lucrativas de Hollywood; um dos maiores desastres já cometidos por um grande estúdio. Tudo isso é verdade, em parte. Falar mal dele é fácil. Ainda assim, essas frases de efeito não explicam um filme que, apesar dos pesares, é um capítulo importante dentro da indústria hollywoodiana e do subgênero dos super-heróis como um todo.
SALADA ‘TOYÉTICA’
Na minha crítica de Batman Eternamente, falei sobre como Schumacher e o estúdio Warner desenvolveram uma nova visão para o Homem-Morcego após os dois primeiros filmes dirigidos por Tim Burton. O estúdio queria um filme mais parecido com um comercial de brinquedos, mais diversão para a família, e Schumacher entregou. O resultado agradou e arrecadou mais nas bilheterias, por exemplo, que Batman: O Retorno (1992).
E assim como aconteceu com Burton em O Retorno, a Warner deixou Schumacher um pouco mais solto na continuação. Claro, Batman & Robin ainda tem muito daquela mentalidade de “parque de diversões”, o tipo de filme que hoje deixa Martin Scorsese de cabelo em pé. Os heróis trocam de uniforme diversas vezes ao longo da história, possuem uma grande variedade de equipamentos, tudo para vender brinquedinhos de modo ainda mais descarado que no anterior. No fim das contas, este quarto exemplar da bat-franquia é igual ao terceiro, só que um pouco piorado: ainda mais descontrolado, ainda mais “toyético” – esse é o termo que os licenciantes de brinquedos baseados no filme cunharam, segundo o próprio Schumacher.
Em termos de história, também é a mesma coisa do anterior. Os vilões da vez são o Senhor Frio (vivido, dentre todas as pessoas, por Arnold Schwarzenegger) e a Hera Venenosa (Uma Thurman, a única que parece estar se divertindo na parada). Ambos surgem, se aliam e partem para combater a dupla dinâmica de Gotham City – George Clooney, substituindo Val Kilmer, e Chris O’Donnell.
Um aparte: oficialmente, Kilmer não retornou porque a Warner acelerou a produção de Batman & Robin e o ator tinha outros compromissos, mas é óbvio que o péssimo relacionamento entre ele e o diretor contribuiu para a sua saída. Clooney estava em ascensão, fazendo sucesso na TV com ER: Plantão Médico, e já tinha estrelado dois pequenos sucessos nas telonas: a comédia romântica Um Dia Especial (1996) com a ex-Mulher-Gato Michelle Pfeiffer, e Um Drink no Inferno (1996), da parceria Quentin Tarantino/Robert Rodriguez. Verdade seja dita, Clooney tem o queixo ideal para viver o Batman – só Ben Affleck representou concorrência à altura para ele neste quesito. E ele se sai um pouco melhor que Kilmer, reconheçam, fãs!
Enfim, Clooney viu a chance do estrelato e a agarrou. Pena que tudo ao seu redor seja muito ruim, a começar pelo roteiro, do picareta – e futuro vencedor do Oscar (!) Akiva Goldsman (“Uma Mente Brilhante”). A trama é muito mal construída: o Senhor Frio tem uma motivação trágica, salvar sua esposa – tirada de um episódio de Batman: A Série Animada – mas quase todos os seus diálogos envolvem algum tipo de trocadilho com frio ou gelo. Ou seja, pensaram num personagem angustiado… que faz piadinhas o tempo todo. A motivação da Hera Venenosa também é idiota: ela quer acabar com a humanidade… Porque sim. E o roteiro inclui uma crise para o Alfred (Michael Gough, cujo desempenho simpático e humano é uma das poucas qualidades do filme) resolvida de forma mágica no final.
Para completar a salada “toyética”, o roteiro inclui a Batgirl, vivida por Alicia Silverstone – na época outro nome quente depois de As Patricinhas de Beverly Hills (1996). Neta do Alfred, ao longo da história ela descobre as identidades da dupla dinâmica e resolve ajudá-los, virando super-heroína em 5 minutos. E ainda troca de uniforme. As fofocas da imprensa, durante e após as filmagens, sobre o fato de que a atriz não entrava no traje da heroína – ela chegou a ser apelidada de “Fatgirl” – são mais um capítulo triste a se somar ao desastre do filme.
ADAPTAÇÃO DA SÉRIE PARA A TV
A Batgirl, no entanto, serve para abrir o debate sobre o tom homoerótico/sexual do filme. Afinal, assim como em O Retorno, Batman & Robin também possui um subtexto sexual – não tão intenso e de uma ordem diferente, claro, mas ainda está lá. Nas HQs, a introdução de uma Batwoman e depois da Batgirl, nos anos 1950 e 1960, também teve como objetivo minimizar as conotações gays do relacionamento entre os heróis. Ora, Batman & Robin era um filme de estúdio, porém muitas vezes, mesmo em projetos impessoais da indústria, é possível perceber a sensibilidade da pessoa que comandou tudo, que dirigiu o espetáculo. E Joel Schumacher era um homem gay.
Batman Eternamente já tinha uma vibe gay em algumas cenas com Kilmer e O’Donnell. Neste, isso fica ainda mais perceptível: há mais closes nas bundas dos heróis e os infames mamilos permanecem – parecem ainda mais pronunciados. E Bruce Wayne está de novo em uma encruzilhada num relacionamento com uma mulher, vivida pela modelo Elle McPherson. Nos cenários, tudo está ainda mais carnavalesco, queer, de fato. As estátuas gigantes de homens musculosos em Gotham estão lá para todo mundo ver. A Hera Venenosa – ela própria uma diva, que homenageia Marlene Dietrich numa cena – tenta os heróis com seus feromônios e desperta ciúmes em Bruce e em Dick, e há uma tensão entre eles desde o começo do filme. O próprio George Clooney afirmou anos depois que seu Batman era gay. Schumacher discordava dessa interpretação para Batman & Robin, porém o subtexto está lá.
Esteticamente, Batman & Robin é camp, ridículo e engraçado tal e qual a série de TV dos anos 1960. Schumacher, no fim das contas, fez um remake dela para a tela grande, em uma época em que ninguém exatamente queria isso. E não dá para defender o filme, claro. Mas é uma produção com uma sensibilidade levemente diferente do seu antecessor, e eu já vi gente defendendo Batman Eternamente enquanto desqualifica seu sucessor, o que nunca entendi. Ora, os dois filmes são parelhos em termos de ruindade, não há um desnível tão grande em termos de qualidade de um para o outro.
Então, por que as pessoas hoje ridicularizam tanto o filme? É por causa das piadinhas infames? A do bat-cartão de crédito é impagável… Ora, qualquer filme do Marvel Studios é cheio delas. Você pode argumentar que as de Batman & Robin são idiotas e não funcionam, ao contrário dos filmes da Marvel. Aí é uma discussão válida. Mas e se for o exagero visual o problema? Bem, os filmes do Zack Snyder, com seu tom “adulto” e câmeras lentas intermináveis, também não flertam com a breguice? Ou poderia o maior problema ser a história abobalhada? Ora, nisso até hoje a Warner/DC faz escola. Qual filme tem a trama mais esdrúxula: Batman & Robin ou Mulher-Maravilha 1984? Deixo para você responder. Sem dúvida, é um filme cujas lições foram absorvidas pela indústria, de alguma forma ou de outra.
O PIOR FILME DE HQS?
Batman & Robin não é um bom filme, claro, mas também não o considero o pior de super-heróis de todos os tempos. Acho que coisas como Mulher-Gato (2004), Elektra (2005), X-Men Origens: Wolverine (2009), Lanterna Verde (2011) ou o próprio Mulher-Maravilha 1984, entre outros, são piores. Se você estiver na vibe ideal, pode até se divertir com o longa de Schumacher, ao contrário dos mencionados anteriormente. É possível dar boas risadas com ele, muitas delas não intencionais.
De fato, acredito que o filme ficou tão malvisto justo por ousar zombar do herói e da sua sexualidade. Schumacher cometeu o pecado capital de sugerir uma tensão sexual entre os heróis que estrelavam um grande blockbuster hollywoodiano, e de retratar isso num cenário que hoje chamaríamos de queer.
Não acho que o cineasta fez isso completamente de propósito, mas percebeu algo que vez ou outra vem à tona, se insinua no mito do Batman, e isso muitos espectadores, nerds e fãs do personagem não perdoam. Ainda hoje, a controvérsia silenciosamente persiste…