Todas as temporadas de Better Call Saul, exceto esta última, começaram com uma sequência em preto-e-branco mostrando a vida triste de Jimmy McGill pós-Breaking Bad. Oops, Jimmy não: Gene Takavic, um sujeito com o cabelo rareando e um bigode deprimido que trabalha em uma doceria/sorveteria chamada Cinnabon num shopping qualquer em Omaha.

Pode imaginar a frustração dele, leitor? Por um tempo, ele viveu uma fantasia na qual realmente se reinventou a partir de uma nova persona, Saul Goodman. Por um tempo, teve muito dinheiro e viveu de acordo com as suas próprias regras. E por causa de um professor de química que cruzou seu caminho, perdeu tudo e se resignou a uma existência medíocre sob o eterno temor de ser descoberto. E de fato foi: na abertura da quinta temporada, um sujeito reconheceu o patético Gene como aquele advogado pitoresco de Albuquerque. Naquele momento, o primeiro instinto de Gene foi fugir. Mas na hora H, cansou de viver com medo e disse ao vendedor de aspiradores de pó que “iria cuidar disso”.

E agora, neste décimo episódio da última temporada, Gene cuida. Intitulado “Nippy”, esse segmento demonstra – como se precisássemos de mais alguma prova – o quanto Better Call Saul é incrivelmente bem construída, com paciência e desejo de satisfazer não apenas aos fãs fiéis, mas também às próprias necessidades da narrativa e a visão dos seus criadores.

Usando uma mentira sobre um cachorrinho perdido chamado Nippy, Gene se aproxima do cara que o reconheceu, Jeff (Pat Healy), e da mãe Marion (a lendária estrela da TV, teatro e cinema dos EUA, Carol Burnett). E Gene reage a esse problema de um jeito muito característico: propõe um golpe a Jeff para se livrar dele de vez. Os detalhes desse golpe não devem ser estragados para manter o prazer de quem for ver o episódio, mas é suficiente dizer que eles resultam em mais um extraordinário capítulo da série.

“Nippy” é dirigido pela fantástica Michelle MacLaren e sempre se nota uma energia diferente quando ela dirige Better Call Saul, e também Breaking Bad. Desde o início, o episódio atrai pelo ritmo calculado – diferente dos episódios anteriores, agitados para os padrões do seriado, este aqui é mais deliberado, deixando o espectador no escuro por boa parte do tempo, mas depois fornecendo as respostas – e pela atmosfera. Ele é todo em preto-e-branco e repleto de ângulos de câmera criativos e momentos de imprevisibilidade. E com vários detalhes para recompensar quem conhece a série: aparece uma marca de queijo intitulada “Schnauz Farm”, em homenagem ao roteirista/produtor do seriado Thomas Schnauz, e para começar o golpe Gene volta a usar o anel do seu falecido amigo Marco.

O fato é que o episódio reúne momentos de humor, cenas dramáticas, suspense e um clima especial para a série, seja pela forma como é filmado e pela própria ambientação fria e deprimente. Mas acima de tudo, “Nippy” sintetiza uma jornada de ressurreição para o protagonista da série. Identidade é um tema muito caro a Better Call Saul, especificamente em relação ao protagonista: Jimmy gostava de se passar por outras pessoas, depois criou uma verdadeira nova identidade na figura de Saul Goodman. E posteriormente, se transformou em Gene.

Mas, em meio a todas essas personas, há uma essência dentro dele que se mantém: o trambiqueiro, a do cara cujo maior e verdadeiro talento é aplicar golpes. E como esse episódio indica, essa essência está bem viva, pois, é de fato muito difícil para cada ser humano sublimar ou mesmo matar quem realmente é, para o bem ou para o mal.

Sua essência o fez perder tudo; mas talvez ela seja a chave para que Gene dê a volta por cima, de alguma maneira.

P.S.: Esses bolinhos com cobertura que aparecem no episódio parecem deliciosos…