Desde o início da pandemia do novo coronavírus, produções sobre doenças como ‘Contágio’ e ‘A Gripe’ rapidamente tornaram-se massivamente comentadas nas redes sociais. Mais uma vez, a vida imitando a arte se tornou real e, em busca de uma identificação, o público voltou-se para essas narrativas. Por esse lado, é certo afirmar que a estreia de ‘Boca a Boca’ na Netflix veio no momento mais propício possível, afinal, a produção brasileira fala justamente sobre um vírus transmissível por saliva. Porém, apesar do timing ajudar a popularizar a série, é preciso ressaltar o ótimo trabalho de Esmir Filho em criar uma verdadeira experiência imersiva com um amplo debate sobre temáticas sociais fundamentais.
Em “Boca a Boca”, o contágio envolve majoritariamente os jovens, sendo quase um thriller adolescente. Tudo ocorre na cidade interiorana chamada Progresso, onde os jovens fogem para festas proibidas, desfrutando de tudo que lhes é proibido à luz do dia. Entretanto, após uma festa, Bel (Luana Nastas) é infectada com uma doença desconhecida, a qual aparentemente é transmitida pelo beijo, deixando nas mãos de seus amigos Fran (Iza Moreira), Chico (Michel Joelsas) e Alex (Caio Horowicz) descobrirem qual é a fonte da doença.
Criada por Esmir Filho (“Os Famosos e os Duendes da Mortes” e ‘Alguma Coisa Assim’), que também divide a direção com Juliana Rojas (‘As Boas Maneiras’), “Boca a Boca” traz um delicioso contraste de uma trama futurista em uma cidade pequena e pacata maximizada através de toda a concepção visual – maquiagem e penteado, direção de fotografia e o design de produção – sonora através de excelente trilha sonora. Isso ajuda a criar uma dinâmica viciante nos seis episódios de 40 minutos.
Inconsistências do Roteiro
Logo nas primeiras cenas, somos bombardeados pelo beijaço que alastra a doença, reforçado pelas cores fortes e maquiagens marcantes. Só por este primeiro momento é muito difícil não associar a estética escolhida com a ótima série da HBO, ‘Euphoria’, porém, a trilha sonora nacional logo nos leva de volta para a narrativa de ‘Boca a Boca’. As músicas escolhidas, inclusive, são um ponto forte na narrativa: desde Letrux a Baco Exu do Blues, as canções contribuem para criar uma identificação com a atmosfera e os personagens.
Filmada na cidade de Goiás Velho, “Boca a Boca” utiliza muito bem o espaço bucólico para construir cenas surrealistas. Talvez o único grande incômodo na estética seja a concepção dos animais modificados geneticamente, além dos efeitos visuais ficarem a desejar: os momentos em que eles aparecem sempre são vistos através do recurso de found footage, filmados pelos próprios personagens, deixando algo que já não havia sido executado tão bem ainda mais confuso.
Já que estamos falando de decisões disfuncionais, é preciso repassar alguns momentos mal idealizados. No caso são pequenas incoerências absurdas demais para não notarmos. Ninguém, por exemplo, ainda havia percebido as montagens nas fotos de Manu? Como Maurílio não mostra nenhum sintoma da doença apesar de trabalhar diretamente com a suposta causa? Entendo que algumas perguntas ao longo do caminho podem servir de especulação para uma outra temporada, mas, essas citadas são essencialmente pontas soltas na narrativa assim como personagens que surgem e somem rapidamente de um lugar para outro.
Ordem, Progresso e um Padrão Sufocante
Ao abordar o cenário da cidade pequena com diversos segredos, Esmir Filho busca abrasileirar ao máximo Progresso. Dominada pela pecuária, o nome do local, além de remeter ao lema positivista da bandeira do país, serve também como trocadilho para ‘regresso’. Já o título, “Boca a Boca”, é uma metalinguagem para a transmissão da doença e também de ideias. Por fim, a diferença entre classes sociais amplamente abordada também começa com nomenclaturas em referência à história do Brasil com “sede e colônia.
O choque com esta rigidez da estrutura social advém do foco no protagonismo jovem, sendo a tecnologia, relacionamentos digitais e abertos entre eles, uma busca pela ruptura deste padrão sufocante. “Boca a Boca” aproveita esta via aberta para debater dilemas atuais do Brasil como as chagas da homofobia em momentos grandiosos entre Thomas Aquino e Michel Joelsas e também das diferenças de classes sociais através do ponto de vista de vários personagens e suas vivências em locais distintos
Quase como prevendo os dias de hoje, “Boca a Boca” ainda apresenta o caos trazido pela banalização da doença e das Fake News. Todos esses elementos combinados tornam este o trabalho mais imersivo de Esmir Filho até então. Tanto a história quanto o amplo arsenal de elementos visuais elevam uma série que poderia ser somente uma cópia de uma trama americana como a Netflix tão constantemente faz com produções estrangeiras. Entretanto, ‘Boca a Boca’ consegue superar as expectativas com suas temáticas propriamente brasileiras, sendo mais um ótimo título nacional na Netflix ao lado de “3%” e “Coisa Mais Linda”.