Para quem vive em Estados periféricos relegados constantemente ao segundo plano no contexto nacional, certas conquistas abrem portas consideradas impossíveis em um passado não tão distante. Em relação ao cinema nacional, a política de regionalização do nosso cinema permitiu a realização de longas-metragens das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste capazes de circular em festivais e chegar às salas comerciais. Aconteceu com o Amazonas graças “A Floresta de Jonathas”, no Pará com “Para Ter Onde Ir” e, agora, no Alagoas com “Cavalo”, um dos registros audiovisuais brasileiros mais contundentes dos últimos anos sobre a resistência negra e a riqueza do candomblé.
Dirigido pela dupla Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti, “Cavalo” é uma produção híbrida composta por trechos documentais, ficcionais e performances de dança de sete artistas negros de Alagoas. Através do candomblé e toda sua ancestralidade, o projeto mostra como o corpo daquelas pessoas é um instrumento de ligação com as suas raízes e, acima de tudo, de resistência social.
Mesmo que a temática racial não seja uma novidade no atual cinema brasileiro, “Cavalo” conta com uma potência nas suas imagens e sonoridade impactantes suficientes para se destacar. Muito disso se deve à colocação do corpo negro de protagonista, um corpo em movimento nos mais diversos espaços – praia, trem, manguezais, feiras urbanas, estradas interioranas, becos e vielas, e, claro, no palco. Tudo permeado de intensa afetividade seja marcada pela amizade, angústias sentimentais tão presentes em cada um de nós ou apenas no desespero de um jovem rapaz, pelo temor do preconceito e intolerância, abraçado ao colo da mãe, na cena mais comovente do longa.
Este caldeirão se amplifica para o campo da ancestralidade ao englobar como o candomblé constitui a força vital para a resistência deste corpo negro diante de um mundo que somente fecha portas a eles. Como explica a introdução do filme sobre a origem da vida do ponto de vista da religião e reitera uma das artistas protagonistas de “Cavalo”, a conexão com as suas raízes está na terra e, por isso, o chão, a água e a lama são outros protagonistas, o que rende momentos poéticos de extrema beleza como a sequência inicial e os números de dança angustiantes.
Longe de ser uma produção das mais acessíveis em sua estrutura, “Cavalo” é um tratado sobre a resistência de uma religião e daquelas pessoas em suas crenças e existências, ocupando seus espaços nesta Alagoas que merece e precisa ser mais vista nas telas.