“Maldito é o homem que confia nos homens, que faz da humanidade mortal a sua força, mas cujo coração se afasta do Senhor”. É com Jeremias 17:5 que o morador do Cine Marrocos, Valter Machado, introduz o espectador em uma experiência encantadora aonde qualquer pessoa pode virar uma estrela de cinema quando se tem uma câmera lhe filmando, incluindo uma pessoa sem moradia.

O novo filme do cineasta Ricardo Calil (“Uma Noite em 67”, “Eu Sou Carlos Imperial”) nos insere na realidade dos moradores da ocupação coordenada pelo Movimento sem-teto de São Paulo (MSTS) – iniciada em 2013 e encerrada em 2016 – no interior do Cine Marrocos, nome homônimo do documentário.

No entanto, ao invés de explorar a história majestosa de uma das maiores salas de cinema da América Latina construída dentro de um prédio luxuoso no centro da capital paulista, Calil retrata um recorte da realidade contemporânea daquele edifício. Depois de ser tombado pela prefeitura de São Paulo e encerrar suas atividades em 1994, e, posteriormente, desapropriado em 2010, o prédio ficou sem utilidade até a ocupação do MSTS.

Diante do novo contexto dessa construção, Calil propõe uma experiência de levar aos moradores um curso de interpretação e lhes oferece a oportunidade de reencenar trechos de clássicos do cinema. Remetendo a filmes como “Crepúsculo dos Deuses” (1950), de Billy Wilder, e “Júlio César” (1953) de Joseph L. Mankiewicz, o diretor coloca os moradores para atuarem como se fossem estrelas da era de ouro de Hollywood. Com o preto e branco característico das películas da época associado a um trabalho de mixagem de som brilhante, a sensação que fica é que aquelas cenas foram gravadas naquele período. A edição ainda nos faz um favor de criar um paralelo contínuo dos filmes originais com às imagens gravadas no documentário.

ENTRE FUGAS E DEPRESSÃO

Calil não quer apenas realizar esse experimento, mas também fazer o público compreender como essas pessoas tão talentosas, cheias de vida e sonhos chegaram na situação de falta de moradia. Entrevistando esses personagens, “Cine Marrocos” traz três temas recorrentes: a depressão, a busca por uma vida melhor e a perseguição política.

Valter Machado, o grande personagem do filme, conta que trabalhou como iluminador de teatro, justificando a sua grande facilidade de lidar com a câmera e com a interpretação, mas que, após a morte de seu pai, entrou em depressão. Valusia, outra personagem marcante, um dia dona de uma escola de arte, hoje, uma pessoa sem moradia também por causa da depressão. Com a fala dos personagens, acaba-se sentindo que a depressão pode ser a pior doença existente, pois ela tem o poder para fazer você perder tudo que um dia você conquistou.

O contexto de busca por uma vida melhor funciona na narrativa de maneiras bem distintas, como o caso do Fagner, um rapaz que abandonou o luxo da vida com um pai, que ironicamente era um corretor de imóveis, para viver em ocupações e a Tatiane, uma moça que sonha viver de MMA em Las Vegas.  Porém, um dos pontos mais interessantes do documentário é a revelação que a maioria dos moradores do Cine Marrocos são pessoas oriundas de países do continente africano como o Congo e o Senegal. Dande, por exemplo, era um jornalista no seu país de origem que vivenciava um regime ditatorial e com receio de ser assassinado resolve fugir para o Brasil.

PROTAGONISMO, PELO MENOS, NO CINEMA

Em paralelo, a vivência desses residentes do Cine Marrocos, existe o contexto político centrado na figura do Vladimir, líder da ocupação do MSTS. Inicialmente, ele revela sua posição política e a afinidade com um partido específico, talvez na tentativa de cooptar uma relação positiva com o Estado que ameaça encerrar a posse do prédio. De qualquer forma, revela-se uma pessoa muito duvidosa e, apesar da situação social problemática de todos os indivíduos que vivem naquele edifício, é um personagem que não te traz nenhuma verdade e parece ter interesses escusos, principalmente quando descobrimos que ele cobra aluguel dos moradores. O filme ganha um final marcado por uma reviravolta surpreendente, que nos faz compreender o porquê do versículo de Valter no início do documentário.

“Cine Marrocos” não é um documentário histórico, nem tenta ser; se você quer uma contextualização geral da ocupação, você irá se frustrar. As imagens não são de uma resistência agressiva ou armada como as pessoas estereotipam movimentos como o MSTS ou pessoas em situação de falta de moradia; pelo contrário, você enxerga seres humanos que só querem um lugar para morar e assim terem a possiblidade de realizarem seus sonhos.

A beleza do documentário está nos momentos em que vemos essas personagens não mais marginalizadas, mas protagonizando aquelas narrativas cinematográficas que representam uma época em que o cinema era sinônimo de luxo e poder. “Cine Marrocos” encerra com um gosto amargo, mas causando no espectador o desejo de que talvez algum dia possamos viver uma realidade urbana aonde as pessoas não precisem lutar por um espaço para morar e que prédios abandonados numa cidade repleta de moradores de rua tornem-se espaços com utilidade real para a população. 

 

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