“Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” apresenta uma das suas passagens mais interessantes quando o protagonista (Benedict Cumberbatch) e America Chavez (Xochitl Gomez) cruzam uma série de mundos em poucos segundos. De universos mais sombrios aos realistas até chegarmos aos desenhos animados, vislumbramos a infinidade de realidades possíveis a serem exploradas dentro do Multiverso da Marvel.   

Chega ser irônico, entretanto, como a forma de contar toda esta riqueza em mãos se mostre tão limitada e nem mesmo um cara como Sam Raimi consiga fugir totalmente das linhas-mestras rígidas de Kevin Feige. Não que Raimi seja um neófito neste cinemão de Hollywood, afinal, o diretor passou por todas as etapas de glórias e frustrações em “Homem-Aranha”.   

Se a primeira aventura com Tobey Maguire era o filme redondinho para dar o pontapé inicial, o segundo forneceu a ele a liberdade desejada para criar uma pérola dos blockbusters dos anos 2000, enquanto o terceiro foi a rendição à ganância dos produtores da Sony.  

O VELHO PADRÃO MARVEL  

Em “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, o diretor se equilibra entre as duas últimas experiências com Peter Parker: de cara, o Raimi de “Homem-Aranha 3” ressurge quase como uma obrigação. Ele tem noção completa de que não adianta lutar contra a fórmula consagrada do estúdio. Logo, cumpre o protocolo de piadinhas, cenas de ação genéricas e introdução de novos personagens ou conflitos para gerar os elos que ligam (ou pretendem ligar) o Universo Marvel para suas novas fases.   

Aqui, o estúdio parece completamente repetitivo como demonstra a sequência de abertura vazia de emoção e com CGI de sobra, os easter eggs de todo santo filme, o alívio cômico caindo novamente nas mãos de Wong (Benedict Wong), a relação sem sal de Strange com a personagem de Rachel McAdams – o que é a justificativa dele no final sobre não dar certo com ela? Tornou-se um processo tão mecanizado que o surgimento de uma atriz importante na primeira cena pós-crédito passa longe de qualquer impacto de tempos passados por já ser esperado algo do tipo.  

Até mesmo dois trunfos que “Multiverso da Loucura” estão abaixo do que poderia. Protagonista da melhor série Marvel, Elizabeth Olsen tenta entregar o possível na busca desesperada de reencontrar os filhos e como isso a afeta, porém, o drama dela soa esgotado após os grandes momentos de “Wandavision”. Pelo menos, ela compensa ao encarnar de modo visceral a Feiticeira Escarlarte na fase mais sanguinária, quase como uma Carrie.

>> AVISO: LEVE SPOILER

 

Já os Illuminati surgem para introduzir novos e aguardados personagens vindos da tão famigerada compra da Fox pela Disney assim como para fazer a plateia explodir nos cinemas. E só, pois, a maneira fragmentada como a montagem os introduzem quebrando o ritmo de um momento teoricamente importante e a forma como saem de cena deixa uma sensação de anticlímax e certa aleatoriedade na introdução deles no Multiverso.  

AS BRECHAS PARA RAIMI 

Seria um cenário tenebroso e poderia gerar um filme que, passada a empolgação de certos momentos, seria uma tortura de 126 minutos (para que tão longo, diga-se?) nas mãos de um diretor menos habilidoso. Sorte de “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” ter Sam Raimi, capaz de momentos criativos que um Jon Watts (“Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa”), Peyton Reed (“Homem-Formiga 1 e 2”) ou Destin Daniel Cretton (“Shang-Chi”) jamais conseguiriam.  

Experiente no cinema de terror desde “Evil Dead” até o divertido “Arrasta-Me Para o Inferno”, Raimi consegue trazer o gênero para dentro do MCU. Isso, claro, dentro do limite do possível que permite uma produção orçada em US$ 200 milhões, afinal, classificação indicativa superior a 14 anos nenhum executivo de Hollywood deixaria passar.   

O jogo dos reflexos com a ameaça de Wanda inicia os trabalhos passando pela forma surpreendente de como a vilã passa por cima de cinco heróis, incluindo, uma entordada de pescoço em um personagem querido. A criatividade vai a níveis impensáveis em um duelo com as armas sendo notas musicais para terminar em um zumbi como o salvador do planeta. Tudo feito com uma certa dose de galhofa, sabendo rir de si mesmo e das possibilidades que uma história e personagens destas possibilitam, que remete muito mais a George A. Romero do que o humor fabricado habitual da Marvel. 

Temos ali o diretor de “Homem-Aranha 2” aproveitando as brechas possíveis. São nestes momentos que “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” consegue algo digno de nota e demonstra como os caminhos são inúmeros também para fora da tela igual oferece o Multiverso aos heróis e vilões do lado de lá. Pena que sejam pontas soltas dentro de uma estrutura milionária e dominante, mas, travado em fórmulas que o espectador antecipa tudo aquilo que se propõe sem maiores dificuldades. 

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