Aquele deslumbramento infantil, de quando o mundo parece cheio de mágica e acontecimentos fantásticos: sensação cobiçada, difícil de replicar após a infância, rememorada com carinho em meio ao turbilhão de contas e relacionamentos fracassados da vida adulta. Mary (Dee Wallace) que o diga. 

Mas e se você pudesse reviver esses tempos de olhinhos vítreos e bocas abertas? Um sujeito lançou essa pergunta em 1982, e deixou todo mundo implorando por mais. 

Porque o filme em questão, “E.T. – O Extraterrestre”, foi uma febre global. Foi o longa de encerramento em Cannes, onde deixou a cinefilia internacional estupefata. Superou “Star Wars” e se tornou a maior bilheteria de todos os tempos – antes que Steven Spielberg desbancasse a si mesmo em 1993 com “Jurassic Park“. Além disso, gerou mais de US$ 1 bilhão em merchandising. A Hershey’s que o diga: o chocolate que Elliot usa para atrair

E.T. ao seu quarto passou a vender como água. 

Spielberg já realizara “Tubarão” e “Os Caçadores da Arca Perdida”, mas foi “E.T.” que cimentou sua reputação como guardião do deslumbramento infantil e criador de histórias sacarinas. Talvez este seja até mesmo o texto spielbergiano fundamental. 

Está aqui, por exemplo, o melodrama familiar pautado na figura do pai ausente – Spielberg, filho do divórcio, nunca se recuperou completamente da dissolução de seu idílio infantil suburbano. A unidade familiar de classe média é seu Éden perdido, que ele tenta recriar em seus filmes. 

Contatos mediados

Se trouxe acima todas aquelas cifras e estatísticas, foi para dar a dimensão real do impacto do filme – afinal de contas, este é um dos longas mais amados de todos os tempos. Ele toca as pessoas em algo primordial, alguma verdade universal que as comove. 

Claro, só se entra em contato com um filme a partir de experiências particulares – e não existe sensação mais chata que não compartilhar todo o entusiasmo do restante do público. É como ficar de fora da festa. 

Talvez eu não sinta falta da infância. Talvez eu seja muito cínico – e por isso prefira “Contatos Imediatos de Terceiro Grau“, no qual o fantástico entra na vida do pobre Richard Dreyfuss ao custo da sua unidade familiar. 

Não importa. Uma coisa é certa: rever “E.T.” é testemunhar Spielberg operando a plenos poderes. 

Aqui, os bosques suburbanos, com suas árvores imensas e névoa perene, são portais para uma dimensão fantástica, lar para tudo que uma mente infantil pode conjurar. Enquanto a luz recorta a silhueta dos homens do governo, suas lanternas emitindo feixes na névoa, fica claro que estamos diante de um sujeito com total controle tonal, atmosférico e formal. 

O próprio E.T. é atestado disso. Todos nós conhecemos sua cara, o que talvez torne difícil perceber o quão extraterrestre ele de fato é. Tire alguns instantes para analisar a criatura como se fosse a primeira vez que a visse. Com seu pescoço de lagarto, sua pele viscosa e enrugada, ele parece um cruzamento entre um dinossauro e o bebê do “Eraserhead“.

Naturalmente, a primeira reação de Elliot (Henry Thomas) é pavor. 

E, ainda assim, a criatura é inegavelmente fofa, com olhos gentis de uma infantilidade senil (ou senilidade infantil). Que ela tenha penetrado de vez no imaginário popular é prova do poder de Spielberg – esse eterno garotinho assustado e esquisito, se escondendo dos adultos com seus amigos imaginários no armário de brinquedos. Sua conquista maior foi mostrar que o garotinho esquisito vive em todo mundo.