É triste, mas um dos melhores filmes do ano chegou direto em DVD no Brasil. Ex Machina: Instinto Artificial, estreia do roteirista Alex Garland na direção, é sci-fi instigante e envolvente, conduzido com mão segura e dotado de algo que deveria ser o princípio por trás de qualquer filme do gênero – de qualquer gênero, aliás – ideias.

Para quem não conhece, Garland é o nome por trás de alguns dos melhores filmes do diretor britânico Danny Boyle. Seu romance de estreia, A Praia, ganhou uma adaptação cinematográfica em 1996, dirigida por Boyle e com Leonardo DiCaprio no papel principal, ainda que o resultado não tenha sido exatamente um career high para nenhum dos envolvidos. Mas suas colaborações seguintes com o diretor – Extermínio (2002), que revitalizou os filmes de zumbi após uma década de infertilidade, e Sunshine: Alerta Solar (2007), uma das poucas ficções científicas de vulto do cinema recente – comprovam o fôlego criativo do autor inglês, que aparentemente passou a reservar seus melhores textos para si próprio.

Pelo menos, é o caso desta reedição contemporânea de Frankenstein, que aproveita o mote do clássico de Mary Shelley – a criação de um ser humano artificial – e aquece o caldo com atiladas alusões ao controle que os conglomerados da internet – Google, Facebook, Apple – possuem sobre nossos dados e interações pessoais.

Caleb Smith (Domhnall Gleeson) vence uma seleção entre experts do mundo virtual para estagiar por uma semana com Nathan Bateman (Oscar Isaac, de Inside Llewyn Davis: Balada de um Homem Comum), o fundador da Bluebook, maior ferramenta de buscas online do mundo. Desde o início, porém, a oportunidade aparentemente incrível do programador é subvertida pelo comportamento estranho do empresário, além do clima de mistério e reclusão que envolve seu centro de pesquisas e suas atividades. Bateman está secretamente desenvolvendo uma inteligência artificial autônoma – isto é, uma consciência robótica, capaz de formar seus próprios raciocínios e interagir de forma complexa e imprevisível com os seres humanos. Batizada de Ava, e instalada num corpo feminino (o da bela atriz Alicia Vikander), a IA cativa Caleb, colocando-o num jogo de intrigas com o inventor misterioso.

Dizer mais seria estragar as viradas fascinantes da história, magistralmente trabalhada por Garland. Neste ponto da carreira, o veterano roteirista parece ter depurado as qualidades mais positivas de seus sucessos com Boyle, às quais soma agora novas virtudes como diretor: longe do estilo hiperativo do autor de Quem Quer Ser um Milionário? (2008), Alex adota uma pegada eficiente, sem firulas, pontuando cada cena com o mínimo de elementos necessários. O uso sóbrio das cores e ambientações – o bunker opulento e claustrofóbico de Bateman, o bosque a um só tempo exuberante e misterioso que o cerca – só reforçam a atmosfera pretendida pelas cenas.

O elenco é igualmente eficaz e despojado. Isaac mantém a curva ascendente (em bons papéis, pelo menos – fama ainda parece um porto distante) com seu sombrio e amoral Bateman. O igualmente obscuro Gleeson sustenta as tensões da trama com uma força discreta, mas infalível. A alma do filme, porém, tem de ser Vikander – seu rosto enigmático, como Ava, move todos os conflitos e provocações do roteiro. De fato, é a capacidade da obra de levantar questões incômodas – desde as possibilidades do uso de dados pessoais por grandes empresas à real natureza das interações humanas, que fazem de Ex Machina: Instinto Artificial a melhor ficção científica que o cinema produz em um bom tempo – se não está no mesmo nível estratosférico de Ela (2013), de Spike Jonze, ainda assim é capaz de ombrear, e até superar, com a ótima incursão de Danny Boyle no gênero.

Mais do que o trabalho com o grande diretor, porém, Ex Machina se alinha mesmo à excelente série televisiva Black Mirror, que teve suas melhores temporadas em 2012 e 2013. Tal como aquele programa, o filme de Garland atualiza as preocupações dos grandes filmes de sci-fi – a evolução desenfreada da tecnologia e sua influência potencialmente arrasadora nos destinos humanos. Pertencer a essa estirpe é um grande feito – o que já nos deixa ansiosos para ver que surpresas Garland reserva para as próximas páginas.