Se quem canta, seus males espanta, um entregador de comida tem que passar o dia todo cantando pra ter paz. Essa é a premissa de “Fantasma Neon”, uma explosão de cor, dança e música que representou o Brasil no Festival de Locarno deste ano. O filme dirigido por Leonardo Martinelli figurou na seção internacional da Leopardos do Amanhã – principal mostra competitiva de curtas do evento – e venceu seu prêmio máximo.
João (Dennis Pereira, em sua estreia no cinema) faz entregas para um aplicativo na selvageria cotidiana do Rio de Janeiro. Ele sonha em ter uma moto – mas, por enquanto, trabalha de bicicleta – e divide com vários jovens uma extenuante jornada laboral, a vontade de uma vida melhor e o sonho de transcender sua dura situação.
REALISMO E TEATRALIDADE SIMULTANEAMENTE
Na lógica neoliberal das relações flexibilizadas de trabalho, ser o próprio patrão e dono do próprio destino deveria fazer a vida de qualquer um parecer um filme. Sua realidade, no entanto, é mais similar à de um servo sem senhorio – então, a mente de João toma para si a missão de dar ares de cinema ao seu dia-a-dia, imaginando números musicais que tocam nas feridas dos contratos “zero horas”.
Martinelli acerta em cheio ao conciliar o realismo das cenas faladas com a teatralidade das sequências musicais. Com o auxílio do diretor de fotografia Felipe Quintelas e do montador Lobo Mauro, ele consegue extrair imagens contundentes e vibrantes, como as danças com as mochilas de entrega e o plano em que um grupo de entregadores segura instrumentos de sopro como se fossem armas. O roteiro, também assinado por Martinelli, diz muito com pouco. A cena em que João tem que lidar com um cliente super mala expõe a fragilidade de seu status em poucos minutos, por exemplo.
INVISIBILIZAÇÃO TOTAL
Com apenas 20 minutos e tanto a ser explorado, há belas tangentes capazes de deixar os espectadores desejosos em ver uma versão longa-metragem do projeto. A mais notória delas é uma trama paralela envolvendo outro entregador, Felipe (Silvero Pereira, o Lunga de “Bacurau”). O ator rouba a cena em um diálogo que sugere várias coisas – inclusive algo homoafetivo entre João e Felipe – e indica uma história pregressa que gera curiosidade. Ele também entrega a fala que talvez seja a síntese do filme: “entregar comida com fome é foda”.
Mesmo enxuto (ou talvez justamente por isso), “Fantasma Neon” é preciso em balancear crítica social e energia visual e não foi premiado em Locarno à toa. No mundo de João, tudo está em movimento, menos a sua invisibilidade. Para além das músicas e refeições, ele sabe a verdade embutida nesta linha de diálogo: “nem de neon, eles enxergam a gente”.