“Farrapo Humano” abre com uma cena que poderia ser muito bem tirada de qualquer abertura de um filme de Hitchcock: uma visão panorâmica – na linguagem cinematográfica chamada de travelling  – que viaja pelo espaço urbano até chegar à janela aberta de um prédio. Lá, observamos uma garrafa de bebida alcoólica pendurada do lado de fora, enquanto adentramos por ela e acompanhamos o seu protagonista, o jornalista Don Birmam (Ray Milland), arrumando a sua mala prestes a passar o final de semana em uma espécie de fazenda na companhia do irmão Wick (Phillip Terry) e da namorada Helen (Jane Wyman).

Cineasta sempre discreto e elegante em construir suas narrativas, Billy Wilder neste pequeno segmento de início do seu longa-metragem nos direciona a uma história que poderia acontecer em qualquer grande ou pequeno centro urbano de qualquer continente, país, estado e cidade, isto é, uma história que faz parte do cotidiano, a trajetória de uma pessoa perante os conflitos mundanos da vida.

Com pequenos símbolos (a garrafa amarrada escondida na janela) e diálogos naturais nada expositivos, o cineasta deixa claro nos primeiros minutos do filme que Birman é um alcoólatra e o final de semana perdido que dá nome ao título original do trabalho, será a sua viagem infernal de recaída ao alcoolismo, já que ele foge do encontro e inicia a bebedeira pela cidade desencadeando uma série de situações que só o fazem afundar ainda mais no vício.

Uma viagem pela degradação moral do alcoolismo

“Farrapo Humano” ganhou na época quatro estatuetas no Oscar – Melhor Roteiro Adaptado, Ator, Direção e Filme – sendo o vencedor principal daquela edição. Considero até hoje uma escolha ousada por parte da Academia – estávamos nos conservadores anos 1940, época em que os estúdios interferiam muito nas produções para dar um contexto moralista que passa bem longe do filme – ao dar o prêmio principal da noite a um trabalho realista e extremamente sufocante no seu estudo sobre o processo do alcoolismo na vida de uma pessoa.

Wilder faz um filme de forte componente dramático-trágico, um olhar incômodo sobre o quanto o alcoolismo e a degradação moral se tornam parceiros inseparáveis na ode à tragédia e as experiências que buscamos como escapismo das nossas frustrações pessoais. É interessante que a direção de Wilder juntamente com o roteiro de Charles Brackett recheia o trabalho com diálogos ágeis e que ajudam a conferir a narrativa um ritmo dinâmico mais descontraído ao longa. Isso ocorre paralelo à questão do alcoolismo em uma camada mais profunda, distanciando o trabalho de um moralismo barato ou de um panfletismo didático, tratando a dependência de Don sob a ótica do estudo de personagem e que traz uma reflexão sobre a busca incessante do ser humano pela felicidade, onde o vício funciona como um pequeno refúgio frente as melancolias da vida.

A ousadia dos dois é não demonizar o consumo do álcool no discurso dogmático em tratar o uso da substância através do protagonista. Existe a coragem em equilibrar na mesma balança o prazer e a dor que o alcoolismo gera na natureza humana. “Farrapo Humano” define a química do nosso corpo e a maneira que a utilizamos para o bem e para o mal. Tanto é que Don, segundo a própria namorada Helen, é uma esponja humana que, para alimentar e satisfazer o seu vício pelo álcool, faz qualquer coisa até mesmo ser rude, egoísta e desonesto com as pessoas a sua volta.

Chama atenção que estes ingredientes dramáticos são dosados com momentos de bom humor e situações cômicas pela direção de Wilder na primeira metade da história, como se as trapalhadas de Don para satisfazer o vício – ele encontra-se sem dinheiro – remontem ao imaginário popular da sociedade sobre a figura do bêbado e as piadas contadas sobre ele, geralmente uma maneira de lidar com o adicto e a doença de forma descontraída do ponto de vista da diversão e do hábito social.

À medida que a jornada do jornalista entra em um espiral de decadência e autodestruição, Wilder se despe destas caricaturas típicas do imaginário e mergulha fundo em um realismo dilacerante para retratar a degradação moral humana a partir do sacrifício que Don faz da própria dignidade – a cena que ele precisa roubar dinheiro da bolsa de uma mulher em um restaurante para sustentar o vício é o auge do fundo do poço. São elementos que fazem “Farrapo Humano” sair da delicadeza apresentada inicialmente para uma tensão progressiva semelhante ao cinema de horror e filmada sob a forma de um pesadelo por Billy Wilder.

A inventividade visual de Wilder e a força de Milland

 Por ser um profundo mestre da manipulação da linguagem cinematográfica, é notório o talento do cineasta nos enquadramentos e que permitem o espectador captar nas imagens, o desespero do personagem diante do vício. A câmera alinhada ao belo trabalho de montagem cria cenas particularmente brilhantes: quando Don não se lembra onde guardou uma garrafa em sua casa e a procura pelo cenário, Wilder majestosamente constrói um enquadramento que mostra o exato lugar onde o objeto se encontra. Sem contar outro plano que é de uma rima visual impressionante em que a câmera caminha em direção ao interior de um copo, deixando para o próprio espectador a sensação de estar aprisionado junto ao protagonista no seu ciclo vicioso e a um passo do abismo.

É claro que, pelo menos, metade da intensidade emocional que “Farrapo Humano” produz no espectador vem da personificação fragilizada – pra não dizer humana – de Ray Miland. Seus olhares para a garrafa em uma mistura de alegria e dor são captados pelo ator com uma sutileza fenomenal que nos hipnotiza pelos seus sentimentos ambíguos. O monólogo dele para Jane Wyman reconhecendo as fragilidades, inseguranças e egocentrismo é contundente e facilita o grande estudo de personagem proposto pelo filme. Ao lado da atuação de Nicolas Cage de “Despedida em Las Vegas” é uma das melhores performances cinematográficas do sujeito alcoólatra na tela grande.

Ainda que não seja livre de problemas – a trilha sonora do ótimo Miklós Rózsa, pelo menos, aqui se revela excessiva na sua repetição e os flashbacks do passado entre Don e Helen tornam a obra menos dinâmica e até mais esquemática no contexto fílmico – “Farrapo Humano” continua quase 70 anos depois, um dos melhores retratos do alcoolismo no cinema, uma espécie de avô do recente “Druk” na saga mordaz da decadência viril, do farrapo humano em busca pela redenção.

Wilder faz uma jornada íntima sombria e crível sobre a utilização do vício como uma eterna fuga da realidade frente as mazelas que sobrecarregam os espaços das nossas vidas cotidianas e que em tempos de pandemia, se revelam extremamente relevantes e atuais. Neste sentido, o cineasta mostra que o álcool e seu vício são instrumentos facilitadores de acesso a uma felicidade escamoteada que apenas simboliza a nossa busca desesperada em resgatar “a nossa melhor versão de si” no grande palco que é a vida.

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