Nos últimos anos, temos visto na época de premiações do cinema, a condecoração de atores que interpretaram personagens históricos. Foi assim com Rami Malek, no último ano, por seu papel como Freddie Mercury (“Bohemian Rhapsody”); Eddie Redmayne e seu Stephen Hawking (“A Teoria de Tudo”) e até mesmo Meryl Streep que, entre tantas indicações, levou a estatueta na década passada por sua interpretação de Margaret Thatcher (“A Dama de Ferro”). Por que a Academia gosta tanto de cinebiografias? Ainda é uma pergunta que, para mim, precisa ser estudada.
Um lado positivo, no entanto, das apostas nesse gênero é a oportunidade de conhecermos novas narrativas e figuras emblemáticas. No Oscar de 2020, por exemplo, entre as indicadas a melhor atriz, tivemos Renée Zellweger como Judy Garland, Charlize Theron como a jornalista Megyn Kelly e, finalmente, Cyntia Erivo, intérprete de Harriet Tubman, personagem-titulo desta cinebiografia dirigida por Kasi Lemmons (“Amores Divididos”, “Visões de um Crime”).
A narrativa cobre uma parte da vida desta símbolo de resistência e heroísmo na história abolicionista norte-americana. Infelizmente, “Harriet” não consegue honrar sua figura icônica. Lemmons apela para elementos melodramáticos e clichês muito utilizados em outras produções do gênero quanto em obras sobre este período sombrio da história dos EUA – “12 Anos de Escravidão”, por exemplo, não sai da mente do público durante a 2h05 de duração.
Os caminhos equivocados de “Harriet”
Diálogos excessivamente dramáticos e artificiais, trilha sonora onipresente, um vilão caricatural vivido por oe Alwyn (“A Favorita”, “Duas Rainhas”) são algumas das armadilhas dos clichês de cinebiografias em que “Harriet” acaba por cair. Por conta dessas escolhas equivocadas de Kasi Lemmons, a discussão principal da história fica pelo caminho.
Toda a narrativa em torno da luta abolicionista, a crítica a escravidão e a liderança de Tubman na Guerra Civil – elementos importantíssimos na trajetória da figura real – ficam esquecidas em prol de uma trama que prefere manter-se na zona de conforto e utilizar seus três atos para mostrar uma mulher em processo de autodescobrimento – algo, aliás, infelizmente, comum nas cinebiografias de personagens femininas.
Desta forma, “Harriet” ganha contornos datados, envelhecendo precocemente em vez de gerar a emoção pretendida.
A força de Cyntia Erivo
Por isso, cabe a Cyntia Erivo ser o grande destaque de “Harriet”. Ela consegue fazer com eficácia a transição entre a jovem amedrontada e ingênua, apresentada no primeiro ato, para a mulher madura que impõe liderança e escolhe a liberdade acima de qualquer coisa. Por meio de seu olhar e postura, Erivo transmite do pânico à coragem, deixando nítido o processo de amadurecimento que passa a ativista. Com um rosto muito expressivo, seus silêncios falam muito mais do que os todos diálogos melodramáticos. E esses momentos são tão bons quanto o canto da atriz.
Em um dos poucos momentos criativos de Lemmons, as canções servem de comunicação entre Harriet e seu povo, sendo o elemento da conexão e empatia com o público. É válido lembrar que Erivo compôs as canções ao lado de Terence Blanchard, responsável pela trilha sonora. As letras mostram seus sentimentos e conseguem resumir a grande vida que Tubman teve. Ao unir seus dois talentos, a atriz consegue transformar Harriet na mulher admirável que Lemmons quis ressaltar, mas se perdeu pelo caminho.
Ao se pautar nas convenções já estabelecidas de cinebiografias, Kasi Lemmons perde a oportunidade de ter uma leitura mais profunda sobre o abolicionismo e, dessa forma, de apresentar nuances diferenciadas que pudessem destacar a força e importância de uma mulher como símbolo de liberdade. Ao menos, “Harriet” foi bem representada.