Qual é o filme mais influente da Nouvelle Vague francesa? Seria “Acossado” (1960) de Jean-Luc Godard, ou este “Jules e Jim” (1962) de François Truffaut (e poderíamos incluir ainda “Os Incompreendidos” do próprio Truffaut, lançado dois anos antes)?

Pergunta pueril e inútil, é verdade, mas às vezes é prazeroso se deixar levar por leviandades. Godard e Truffaut são, decididamente, as figuras mais notórias de uma geração sem precedentes na história do cinema, que incluía ainda gente do naipe de Louis Malle, Agnès Varda, Éric Rohmer – Jesus Cristo amado, os nomes se empilham ad infinitum. No geral, eu tendo a gravitar em torno do cinema carrancudo e sardônico de Godard. Não tenho certeza se ele é o tipo de pessoa que você gostaria de encontrar na rua, mas Truffaut, por outro lado, parecia o tipo de cara com quem você passaria boas horas conversando.

Se começo o texto falando de Godard é porque, tendo visto recentemente alguns filmes do seu período oitentista, e reassistindo agora a obra de Truffaut, as diferenças entre as abordagens de ambos saltam aos olhos.Truffaut, o humanista e Godard, o misantropo. Os dois, que começam como amigos em íntima parceria, desde os tempos de Cahiers du Cinema até os primeiros filmes se desentenderam feio no pós-68.

Godard, a essa altura totalmente imerso num cinema marxista e revolucionário, acusava Truffaut de diretor comercial, fácil. Bom, o Oscar que Truffaut levou para casa por “A Noite Americana” (1972) também não ajudava, nesse sentido. Mas a verdade é que Godard jamais seria capaz de fazer um filme como “Jules e Jim”, pro bem ou pro mal. Este é um filme com um halo outonal; é que, embora a morte esteja à espreita a todo o momento, Truffaut é generoso o suficiente para deixar a brisa correr por entre as janelas da memória mais um pouquinho, antes que as cortinas se fechem.

DAS FANFARRAS À VALSA

Essa é a história de uma amizade que se estende por décadas a fio. Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) compartilham uma mocidade afoita nas fervilhantes ruas parisienses. É quando conhecem Catherine (Jeanne Moreau), por quem ambos se apaixonam, mas de quem Jim abre mão para que Jules possa se casar com ela.

A Primeira Guerra Mundial cria uma fissura entre os dois amigos, que lutam por exércitos inimigos. Passam-se os anos, findam-se as batalhas, os amigos se reencontram – e a segunda metade do filme, com Catherine oscilando entre o complacente Jules e o charmoso Jim, é marcada pela melancolia, pela certeza de que o fim se aproxima para todos, e de que os anos em que a vida era toda possibilidades e invenção não têm espaço no mundo sem inocência dos adultos.

Ouça a trilha sonora de George Delerue; são as fanfarras que dão a tônica no começo do filme, em que amor, política e sexo são grandes brincadeiras. Conforme a história progride, as valsas começam a tomar conta da trilha, sempre sugerindo uma melancolia que começa a se assentar e tomar forma nas vidas dos personagens. A bonança do trio não pode durar – é que toda valsa tem também um pouquinho de tristeza.

VITALIDADE PULSANTE EM TELA

E então temos o trabalho de câmera de Raoul Coutard, diretor de fotografia recorrente de, imaginem só, Jean-Luc Godard (e de uma pá de cineastas da Nouvelle Vague, diga-se de passagem). Dê uma olhada nas pans vertiginosas que varrem o espaço entre um personagem e outro. Essa câmera ávida pela errância é, justamente, uma câmera fascinada pelo movimento: não só o andamento do filme é frenético, abreviando a passagem do tempo sem pestanejar, como o filme deriva sua alegria exuberante do vento que faz voar uma echarpe, ou da correria despropositada dos três amigos sobre uma passarela.

É essa vitalidade experienciada pelo infortunado trio de amantes que transpira na forma fílmica. Não é difícil entender o porquê deste ser um dos longas referenciados por Bertolucci em “Os Sonhadores” (2003); também basta olhar no cinema de um, digamos, Martin Scorsese para encontrar a mesma influência: freeze frames, travellings exuberantes, a fragmentação do espaço pela montagem, está tudo ali.

Sobre esta última, é uma montagem que nos remete a alguém que tenta fixar na memória uma mesma imagem de todos os ângulos possíveis. E essa imagem é frequentemente o rosto de Jeanne Moreau. Já foi dito à exaustão sobre como a Catherine de Moreau é o pilar do filme. E que rosto singular, não é?

Ela tem olhos pesados, adornados por olheiras salientes que lhe dão um certo ar grave, mesmo quando ela ri com a expansividade de um redemoinho. Esses olhos são a materialização daquele je ne sais quoi sexy-chic-intelectual, do tipo fumante e bebedor compulsivo de café, que denota parte significativa do que há de cool no cinema francês sessentista.

AINDA ASSIM…

E, ainda assim, embora consciente de sua grandeza, termino o filme desejoso de um algo a mais, daquela descarga catártica de emoção de quando sentimos a obra na pele. Esta foi minha terceira vez revisitando “Jules e Jim”, e a mesma sensação de falta me perseguiu ao fim de cada uma delas. Ela começa a se instaurar ali pela segunda metade, nas passagens bucólicas da trama; no momento em que Catherine está apontando uma arma para Jim, a tal falta já tomou corpo.

Seria ela oriunda, justamente, desse andamento frenético, que salta semanas, meses, anos, de uma cena a outra? Mais do que isso, eu confesso que, em momentos como o da arma mencionado acima, me frustra um pouco o tratamento dado à Catherine de Moureau pelo filme: simplesmente não me é tão interessante essa figura da mulher opaca, irresistível e misteriosa, cujo desfecho lógico para uma vida de libertinagem e joguetes amorosos só pode ser dado pela tragédia e histeria.

O que sobra, então? Aquele inesquecível início parisiense – prólogo promissor para vidas que inevitavelmente seriam estancadas –, que traz consigo a leveza e a agilidade de uma bailarina audaciosamente desenhando saltos no ar, e aterrisando na ponta dos pés ligeiros.

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