Se tem uma coisa que sempre me impressiona no cinema de Paul Thomas Anderson – PTA para os íntimos – não é a regularidade da sua filmografia, característica que é bem comum dos grandes cineastas. Chama-me atenção sim o ótimo poder emocional que ele tem em narrar histórias intimistas que abordam amor, solidão e redenção dentro das jornadas cinematográficas a que se propõe oferecer aos seus personagens, os tirando das zonas de conforto juntamente com o espectador que acompanha do outro lado da tela. 

Licorice Pizza reúne estas características acima citadas, para contar pela terceira vez, uma história de amor na carreira do diretor. Passado nos anos 1970, temos a relação entre Gary (Cooper Hoffman), que apesar da pouca idade – 15 anos – já é um adolescente prodígio, ator de uma série televisiva, empreendedor precoce do mundo dos negócios e que acaba se apaixonando à primeira vista por Alana (Alana Haim, cantora da banda pop Haim em sua estreia nos cinemas), uma jovem adulta judia de 25 anos, indecisa, mas que sonha ser atriz. A diferença de idades não impede de eles estabelecerem uma atração platônica e volátil no Vale de São Fernando, subúrbio de Los Angeles. 

Nota-se neste novo trabalho que o cineasta faz um filme claramente autobiográfico e pessoal – as escolhas de Cooper, filho do saudoso e inesquecível Philip Seymour Hoffman, ator que mais trabalhou com o cineasta e Alana, cuja banda Anderson dirigiu vários clipes, são indicativos disso – que mergulha no subúrbio americano californiano dos anos 70 para falar sobre a docilidade juvenil e sua delicadeza, a partir dos encontros e desencontros que Gary e Alana tem durante as suas trajetórias de vida. 

CORRER COMO ATO APAIXONADO

PTA já na primeira cena do filme – com o seu habitual plano-sequência – deixa claro que estamos diante de um filme romântico, cuja câmera capta o espírito gracioso da dupla protagonista, além de traduzir a atmosfera minuciosa na sua estranheza visual, narrativa e na elaboração dos personagens. Aqui, a descoberta do amor e o quanto ele é um facilitador no processo de autoconhecimento na relação entre Gary e Alana, ajuda ambos a romperem os bloqueios emocionais e assim se relacionarem de uma maneira madura entre eles, com o mundo e nas relações a sua volta. 

Em “Licorice Pizza”, passar o tempo em movimento é uma forma de conhecer profundamente a pessoa que se ama, o que explica o casal estar sempre correndo durante o filme, talvez em busca de algo, talvez em fuga deles mesmos, talvez em experimentar a mesma sensação de conexão do primeiro encontro. Por mais que os caminhos do casal se desenlacem, eles sempre estarão a espera um do outro, afinal o verdadeiro amor adolescente não é isso? Do medo natural ao prazer que a juventude proporciona, das reações espontâneas nas experiências de primeira viagem que contribuem na jornada de amadurecimento, da inocência na descoberta do primeiro amor e os sentimentos e laços que percorrem a relação à dois na busca pela segurança afetiva. 

São dentro destas temáticas, fatiadas em formato de pizza e fermentadas para impulsionar a sua narrativa episódica, que PTA revela urgência e o arrebatamento dos impulsos juvenis de Gary e Alana como se os dois corressem desenfreadamente para não deixarem a paixão e o medo proveniente dela, escapassem de suas mãos. A alegoria do “correr” nada é mais do que uma necessidade de viver a paixão na sua intensidade. 

O sentimento saudosista que o diretor impõe neste coming of age de descobertas ajuda a costurar homenagens ao cinema clássico romântico com diversas referências a filmes, atores, séries e situações ao mundo hollywoodiano era do auge da Nova Hollywood – a participação dos grandes Tom Waits e Sean Penn, este uma espécie de personagem paródia de William Holden, escancaram este olhar cínico do cineasta em torno desta época – e até mesmo em pincelar memórias nostálgicas para pontuar as conversas reminiscentes e puramente românticas entre eles. É como se todo o filme fosse formado por pequenos contos que navegam por situações prosaicas, surreais e que se valem do humor absurdo e do romance peculiar bem especial na sua maneira de falar sobre um período cinematográfico mágico no imaginário cinéfilo. 

A ENCANTADORA QUÍMICA DE ALANA E COOPER

Gosto ainda da forma que Anderson dimensiona as personalidades do casal, com a ousadia e inovação de Gary nos negócios sendo uma alegoria sobre sucesso do movimento da Nova Hollywood e do empreendedorismo capitalista americano. Já Alana retrata o naturalismo da descoberta e da vocação, lidando com um mundo masculino que praticamente a deseja e a descarta em relação aos desejos, uma representação complexa sobre a arte mais genuína e autoral dentro do cinema. 

Essas sensações só são possíveis porque Cooper Hoffman e Alana Haim defendem com excelência seus personagens. O primeiro traz a confiança – herdou isso do gene do pai – o charme e a inocência de Gary ao mesmo tempo que mostra uma intepretação sólida em expor a mentalidade de um homem de 40 anos do seu personagem, indo do menino ao homem com uma grande naturalidade. 

Ela empresta não apenas seu nome e sua família na constituição do elenco, como também irradia sua personagem com uma força de carisma e sarcasmo, sempre utilizando sua beleza não-convencional para magnetizar o público, facilitada pela fotografia de Michael Bauman que utiliza rompantes de luz solar invadindo a tela e reiterando o brilho dela. 

PEQUENOS EXCESSSOS

Apesar destas ótimas qualidades, é perceptível que “Licorice Pizza” não é tão sólido como os outros filmes de Anderson. Ainda que siga uma direção particular de intimidade com seus atores e personagens, há uma vasta coleção de personagens secundários e subtramas que acrescentam muito pouco a trama principal do filme. 

Diferente do que aconteceu em “Boogie Nights” e “Magnólia” onde os subenredos se faziam muito presente e dava sustância a história principal, em “Licorice Pizza” temos situações e pessoas que aparecem do nada para depois sumirem, sem deixar saudades ou darem relevância a trama amorosa.  Exemplo disso é todo o manual de pequeno empreendedor de Gary que se torna um porre e deixa o filme sem foco e tedioso em certos momentos. Até mesmo a minha cena favorita no filme, a do caminhão sem gasolina que conta com uma ponta inspiradíssima de Bradley Cooper, em versão psicopata com ácido, seria ainda melhor se mais bem contextualizada. 

Que fique claro: o filme tem instantes lindos tipo a cena das carteirinhas e outros divertidíssimos como a entrevista na agência de atores, além de recriar o subúrbio californiano com uma trilha esplendorosa – o que falar de Gary correndo entre os carros ao som “Life of Mars” de David Bowie, enquanto temos uma dimensão de fim de mundo causado pela crise do petróleo. Isso não tira a sensação de um filme torto com bons momentos, onde o talento de Anderson de contar grandes histórias se perde em algumas das suas vaidades. 

Isso não impede “Licorice Pizza” de ser uma bela experiência sensorial imersiva, que dentro da sua história amorosa, traz uma mensagem bacana que as sementes do amor ajudam a florescer no amadurecimento juvenil um mundo melhor para nos relacionarmos. Paul Thomas Anderson, sem grandes pirotecnias, faz a arte cinematográfica tocar fundo em nossos corações.

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