Caro leitor, uma perguntinha pra você: quando foi a última vez em que você estava vendo um filme e ficou com a sensação de que não tinha a menor ideia de para onde a história estava indo? Quando foi a última vez em que disse para você mesmo: “não sei para onde isso está caminhando e estou adorando justamente por causa disso”?.

Fazia um bom tempo que eu não sentia isso e aconteceu com “Maligno”, de James Wan.

Ele tem de tudo: começa em um asilo macabro com uns médicos igualmente sinistros. Depois tem aparições que lembram fantasmas de filmes japoneses, um assassino de luvas pretas estilo filme giallo italiano, elementos de possessão demoníaca, de horror psicológico, sanguinolência… E uma história cujos desdobramentos não devem, de modo algum, ser estragados para o espectador.

É como se Wan, grande nome do terror moderno responsável por Jogos Mortais (2004), Sobrenatural (2010) e os dois primeiros Invocação do Mal, tivesse virado um bruxo, criado uma alquimia doida e a jogado dentro de um liquidificador macabro. Nos seus filmes anteriores, Wan não reinventava a roda, mas dava um bom polimento nela, recauchutando subgêneros já conhecidos do cinema de horror e suspense. Em Maligno, é como se ele abraçasse a roda e então a jogasse pela janela. É um filme de um cineasta dando o próximo passo, subindo para o próximo nível.

SALTO NO VAZIO 

Na sinopse mais cuidadosa possível, Maligno é a história de Madison (interpretada por Annabelle Wallis), que está grávida e é agredida por seu marido abusivo. Certo dia, acontece uma coisa em sua casa e ela começa a ter sonhos com assassinatos e uma figura espectral. Quando descobre que os assassinatos com que ela sonha estão ocorrendo na vida real, a protagonista passa a suspeitar que seu amigo imaginário de infância, um tal de Gabriel, pode estar envolvido nesses crimes…

Essa história, concebida por Wan e pelas co-roteiristas Ingrid Bisu e Akela Cooper, é uma salada insana que acaba se configurando numa homenagem ao gênero terror e, ao mesmo tempo, uma experiência tão maluca quanto dramática e com vários subtextos – abuso, negligência paterna, trauma. Claro, tudo isso para quem curtir porque Maligno é um salto no vazio sem rede de proteção: Wan, Bisu e Cooper se arriscam a desagradar parte do público com alguns aspectos da história. Não é impossível desdenhar de Maligno ou achá-lo uma bobagem sem pé nem cabeça, mas quem embarcar na proposta provavelmente deve experimentar um dos filmes mais divertidos do ano.

delicioso e absurdo espetáculo de horror

Wan filma tudo com um domínio absurdo da câmera: Maligno tem transições de cena interessantes, movimentos de câmera criativos e ótimo uso de efeitos visuais. Ele ainda consegue, como poucos, reger a plateia como um condutor de orquestra, criando inquietação com uma movimentação de câmera mostrando algo que não deveria estar dentro do quadro ou simplesmente permitindo que o olhar do espectador vasculhe o ambiente onde uma personagem está, antes que aconteça o evento assustador. Até momentos de humor para quebrar a tensão ocorrem com organicidade. Domínio técnico ele sempre teve – foi o que o possibilitou até sair do gênero terror, dirigindo os blockbusters Velozes e Furiosos 7 (2015) e Aquaman (2018) também com desenvoltura.

Outros colaboradores anteriores de Wan também entregam ótimos trabalhos aqui, a começar por Joseph Bishara na trilha sonora – ele aqui se afasta das orquestrações e temas atonais e perturbadores, por exemplo, do universo de Invocação do Mal para compor uma trilha eletrônica com um tema principal notadamente inspirado na canção “Where’s My Mind” da banda Pixies, muito usada no cinema moderno, mas aqui funcionando acima da média. E a atuação de Annabelle Wallis, que já trabalhara com o Wan produtor em Annabelle (2014), é provavelmente a melhor da sua carreira até o momento: ela está perfeita gritando e arregalando os olhos – é a imagem-assinatura do filme. É uma atuação 100% calibrada com a proposta de “Maligno”, a um passo do exagero, mas, de algum modo, nunca se entregando a ele e com toques humanos para manter ao menos um dos pés do filme na realidade.

Porém, ao se aproximar de seu final, até esse pé na realidade que Maligno estava mantendo alça voo e James Wan pira, transformando seu filme num delicioso e absurdo espetáculo de horror cinematográfico. É preciso coragem para pirar no cinema industrializado de hoje em dia, para fazer algo do tipo “ame ou odeie” conscientemente, e em Maligno isso acontece. Nem tudo faz sentido, a lógica vai para o banco de trás, mas não importa: a bizarra criação de James Wan é um pedaço de cinema que não será esquecido, até por aqueles que não gostarem do filme. E isso, caro leitor, não é algo que acontece toda semana.

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