Dirigido por A.V. Rockwell, “Mil e um” constrói a história a partir de um encontro seguido de um crime, tessitura esta projetada por meio de subversões e a luta pela sobrevivência, ambas permeadas por muita sensibilidade. É surpreendente que este seja o longa-metragem de estreia da diretora ao mesmo tempo em que atesta seu olhar afetivo e empático sobre relacionamentos e corpos negros. 

Acompanhamos Inez (Teyana Taylor), uma mulher negra que acaba de sair da cadeia. Ao encontrar o filho Terry (Josiah Cross), tenta uma aproximação com o garoto e o sequestra para que possam finalmente conviverem como uma família. Ao escolher essa abordagem, Rockwell nos oferta um drama familiar em camadas descascadas ao longo dos anos. 

Iniciando em 1994, “Mil e um” faz um passeio pela gentrificação nova-iorquina por 10 anos, enquanto vemos o perímetro urbano mudar, comércios deixarem de existir, construções antigas entrarem em decadência e a política em relação a corpos negros e imigrantes se tornar mais taxativa e menos abrangente. Nesse percurso, somos convidados a presenciar a tentativa de Inez de estabelecer um lar, lutar pela sobrevivência e tentar burlar um sistema que oprime aqueles que estão na base da pirâmide. 

O cenário evidencia o quanto a criminalidade está sempre à espreita, seja na tentativa de ressocializar um ex-prisioneiro ou de manter uma família apesar das oportunidades fechadas pela raça. No entanto, Rockwell escolhe se distanciar desse ambiente e focar na construção familiar e os percalços enfrentados por Inez para sustentar tanto socialmente quanto emocionalmente o lar que julga ser ideal para Terry. 

Relação mãe versus filho

Há uma elaboração interessante em torno da relação entre mãe e filho. Desde o início, fica nítido uma busca ardente de ambos por ficarem juntos, como se a junção deles fosse o único lugar a qual pertencem. Me chama atenção como, apesar de aparentarem dependência e haver um sentimento genuíno entre eles, o roteiro não é obtuso ou fantasioso para levar o público a idealizar que só o amor é suficiente para manter um lar. As entrelinhas e as discussões maternas gritam que é preciso haver mais. 

Durante a infância, Terry questiona a mãe do porquê ela sempre o abandonar, o garoto carrega dentro de si uma carência e um sentimento de abandono que transpassa o olhar de seu intérprete. Inez também não fica atrás, culpa o fato de ter crescido em um orfanato sua carência de percepção materna, por outro lado é controladora e quer ter o menino sempre junto a si, independente das ausências e necessidades que possa impor a ele. Considero esta uma escolha corajosa e ousada do roteiro, uma vez que delineia um tipo de maternidade tangível e pouco abordada. Rockwell não teme mostrar as falhas de Inez em sua tentativa torta de estabelecer uma família, a personagem toma decisões equivocadas e paga ao longo dos quase 120 minutos de projeção por cada uma delas. 

Nesse ínterim, é preciso destacar a força e sensibilidade que Teyana Taylor impõe a personagem. Inez aparece como uma mulher fisicamente forte e atraente que vai definhando — de forma mais interna do que externa —, conforme a revelação de seu maior segredo se aproxima. Paralelamente, a fotografia trabalha esta ideia a enclausurando dentro do apartamento que divide com Lucky (William Catlett) e o filho, deixando-o mais soturno, mergulhado em sombras e num azul que demonstra mais do que a tensão, a angústia e carência escondida dentro da família que ela tentou manter. 

Gaslight e a busca por uma masculinidade docilizada

Parte da angústia da personagem, no entanto, é transposta na maneira como é tratada pelos homens que passam por sua vida. Inez é uma mulher negra, pobre, mãe solo e ex presidiária; este combo de características poderia ser o suficiente para mostrar o quão a margem da sociedade ela se encontra, porém, para mim, seu drama se adensa com a visão de insanidade que jogam sobre ela toda vez que ergue um pouco a voz e decide falar o que pensa. O comportamento inviabiliza sua opinião, piorando com ela mesma sendo condescendente a esta imposição. 

Por fim, Rockwell apresenta ainda uma masculinidade dócil por meio de Lucky. Embora “Mil e um” se debruce na relação cotidiana de mãe e filho, o amado de Inez é uma figura surpreendentemente subversiva dentro da trama, sendo o personagem mais carinhoso e, consequentemente, solidário em toda a projeção. Ele tem seus momentos de gentileza e amabilidade com a protagonista e assume a paternidade do garoto nos momentos em que este mais necessita de uma figura masculina de referência. 

Tudo isso nos prepara para as surpresas que seguem o ato final, apontando a criatividade e sensibilidade com a qual Rockwell aborda temas tão densos. “Mil e um” se torna assim um filme simples, mas muito bem elaborado, debatendo maternidade, gentrificação, masculinidade e carência a partir de camadas que se revelam paulatinamente ao público e de modo a nos fazer refletir sobre como o mundo é mais cinza e azul do que colorido. Rockwell estreia com o pé direito.