Steven Soderbergh é um cineasta, no mínimo, curioso. Seu primeiro filme, Sexo, Mentiras e Videotape (1989) mudou os rumos do cinema independente norte-americano quando saiu – e é, de fato, um grande filme. Ao longo dos anos, ele ganhou Oscar de direção por Traffic (2000) e já fez uma grande quantidade de filmes, de diversos gêneros diferentes. Alguns deles foram bons, outros foram ruins. Alguns de seus filmes são envolventes e divertidos, outros são muito chatos. Ele até se aposentou do cinema e ficou inativo por alguns anos, mas voltou – é uma criatura que gosta de filmar, tanto que é o diretor de fotografia dos próprios filmes, sob o pseudônimo Peter Andrews.

E ao longo de sua trajetória, ele se adaptou às mudanças da indústria como um camaleão. Começou filmando em película, depois abraçou o digital. Dirigiu episódios de série de TV. E trocou as salas de cinema, sem pestanejar, pelos streamings: já lançou produções na Netflix e, mais recentemente, na HBO Max. É, aliás, nela que chega seu novo filme, Nem Um Passo em Falso. Bem, neste caso, estamos diante de um dos Soderberghs que resultou numa grande chatice pretensiosa.

PROFUSÃO DE ATORES EM EXCESSO

Ambientado em Detroit em 1954, Nem Um Passo em Falso roteirizado por Ed Solomon é uma história de crime e traição, com estilo e umas pitadas de comentário social. Devia funcionar, mas não ocorre em grande parte pela condução do diretor – afinal, alguns dos seus ótimos filmes anteriores foram sobre crime como Irresistível Paixão (1998) e Onze Homens e um Segredo (2001).

Na trama, Don Cheadle e Benicio Del Toro são dois criminosos pé-rapados contratados para um serviço aparentemente simples: recuperar um documento. A missão deles é invadir a casa de um sujeito, interpretado por David Harbour, e fazer a família dele refém enquanto vão em busca do tal documento. Mas claro, nesse tipo de filme os planos não dão certo, e logo tem início uma rede de traições entre os personagens, forçando os anti-heróis a se aliarem temporariamente para sobreviver.

Ou seja, o que começa como um Horas de Desespero (1955), o clássico noir com Humphrey Bogart, confinado e tenso, logo se transforma num filme cheio de coadjuvantes e subtramas não aprofundadas, causando confusão e até inchando o filme. Soderbergh é muito querido por atores e atrizes, então ele consegue nomes tarimbados para compor o elenco de Nem Um Passo em Falso: temos Ray Liotta, Bill Duke, Jon Hamm, Julia Fox, Amy Seimetz e Brendan Fraser, obeso a ponto de ficar parecido com Orson Welles, o que provavelmente foi proposital da parte do diretor. E há também a participação surpresa de um grande astro, veterano de colaborações com Soderbergh, perto do fim.

Todos os atores estão bem, mas suas presenças curiosamente não coalescem, não funcionam juntos. O espectador não fica interessado em acompanhar nenhum daqueles personagens nem se interessa por quem vive ou morre. As mortes, aliás, muitas vezes vem como surpresas, mas às quais só se reage com irritação. Não nos importamos nem com os protagonistas, e quando o roteiro tenta incluir um comentário social sobre desigualdades raciais e econômicas ao Cheadle e Del Toro confrontarem o arquiteto de toda a conspiração, Nem Um Passo em Falso já está perto do fim e o resultado é nulo.

 EXCESSOS DE SODERBERGH

Mas se o roteiro tem lá seus problemas, o filme acaba morrendo mesmo na encenação de Soderbergh. É um cineasta cinéfilo, claro – não é à toa que a trilha sonora de David Holmes, outro habitual colaborador, emule em alguns momentos a de Chinatown (1974). O problema é que o toque do diretor passa do ponto e torne tudo uma brincadeira cinematográfica, sem peso, só estilo sem substância. Ele já fez filmes assim antes e aqui incorre nisso de novo.

Por algum motivo insondável, Soderbergh também resolveu filmar quase todo o filme com uma lente grande angular que deforma os ambientes e as pessoas, criando uma distorção quando a câmera se movimenta. É como se o diretor tivesse visto a esquisitice com a lente olho de peixe constante em A Favorita (2018) e dito, rindo: “vou superar isso daí”. Difícil entender essa decisão estilística, afastando o espectador ainda mais e cria na obra um ar de pretensão vazia.

Bem, no fim das contas, as próprias naturezas da carreira e da obra de Steven Soderbergh colocam Nem Um Passo em Falso em perspectiva. É um filme que desperta o tédio, com muito pouco a se aproveitar da experiência. Mas não é o primeiro do tipo que o diretor já realizou. Quem sabe o próximo seja melhor. Talvez isso seja algo bom, alguns artistas precisem de condições de imprevisibilidade e variedade para produzir. E não tarda muito, chega um novo filme de Soderbergh por aí. O homem não para.

Para encerrar com uma citação cinéfila, daquelas que Soderbergh adora, é apropriado relembrar Forrest Gump (1994): assistir a um filme dele é igual a uma caixa de chocolates, você nunca sabe o que vai pegar.

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