Apesar de “Noites de Alface” estar envolto em situações misteriosas, elas não têm tanta importância quando o mais interessante são as reflexões sobre envelhecer e das trivialidades da rotina cotidiana.  O grande trunfo do filme é ouvir os protagonistas dessa trama remoerem pensamentos sobre suas existências. Esses momentos, infelizmente, ocupam poucos momentos de tela.

Primeiro longa-metragem de ficção dirigido e escrito por Zeca Ferreira (“Ensaio sobre o silêncio”) é uma adaptação do romance homônimo da autora Vanessa Barbara. O filme se passa em dois tempos narrativos: um é com Ada (Marieta Severo) ainda viva convivendo com Otto (Everaldo Pontes) na grande casa do casal e, em outro momento, quando ela está falecida e ele passa a viver sozinho.

Ada e Otto, um casal de idosos vivem em Paquetá, cidade charmosa do interior do Rio de Janeiro onde todos se conhecem. A partir do momento em que o público compreende o falecimento de sua esposa percebemos o quanto Otto está perdido e confuso nos seus hábitos. Essa confusão aliada a uma insônia – solucionada apenas graças a um chá de alface – traz ao personagem a sensação de que algo de estranho está ocorrendo entre os seus vizinhos. Todos na cidade são solícitos, no entanto, agem de maneira sorrateira, como se estivessem escondendo algum segredo. Apesar de ganhar muito tempo em cena, o mistério se mostra descartável.

É a sensação da efemeridade da vida humana, carregada principalmente no consciente de Ada e sentida discretamente por Otto, a grande marca de “Noites de Alface”. Em um dos diálogos do filme, a protagonista fala para o marido que não suporta coisas que amassam com o tempo: “(…) tipo fruta, papel e gente”. A personagem não aceita a ideia de um fim da vida e da juventude, entretanto, quando questionada por ele se fica refletindo essas ideias, Ada responde não ter tempo para pensar nisso. O irônico é que tempo livre para divagar em seus pensamentos é algo rotineiro nesse casal.

São personagens com uma rotina aparentemente enfadonha, porém apresentam questionamentos importantes e universais na sua velhice: como vamos morrer? Por que morremos? Durante a narrativa, elas ganham situações essenciais, não para respondê-las, mas para justificá-las e fazê-los compreender a fragilidade da vida humana.

  SOBRIEDADE E AUSTERIDADE  

O texto do longa é cheio de diálogos expositivos, algo possível numa linguagem literária, mas no audiovisula soam artificiais. Cabe ao elenco a missão de transformá-lo em algo crível. Marieta Severo (“Carlota Joaquina, Princesa do Brasil”, “Cazuza: o Tempo Não Para”) consegue criar uma Ada discreta e introspectiva pedindo até mais tempo de tela, pois é a melhor protagonista. Everaldo Pontes (“Amarelo Manga”, “São Jerônimo”) ocupa a maior duração do longa trazendo a personalidade rabugenta e confusa do personagem de Otto transitando entre a comédia e o drama, algumas vezes funciona e em outras não.

Ferreira demonstra dominar mais a visualidade do filme ao invés dos diálogos no roteiro. Existe uma solenidade na câmera e nos enquadramentos; em poucos momentos a câmera se movimenta e sempre cria quadros abertos e espaçosos no filme. Isso gera um distanciamento do espectador com a realidade daqueles personagens e, ao mesmo tempo, cria uma sensação de estranhamento como se algo não estivesse correto. As transições das sequências são suaves e discretas conduzindo o estado mental de Otto e pulando entre os dois tempos da narrativa.

Essa direção sóbria e austera salva o filme de se tornar uma experiência ruim já que facilita o espectador a escutar aqueles protagonistas e chegar ao final sem achá-lo esquecível ou descartável. Quanto menos elementos Ferreira trabalha na obra, mais interessante ela fica. “Noites de Alface” é um filme regular com alguns momentos encantadores, nada incrível ou empolgante, se contentando em apenas contar uma história aparentemente banal sobre o encerramento da própria existência.

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