“O acidente”, primeiro longa-metragem do gaúcho Bruno Carboni, é o tipo de filme que te deixa tenso e atento do início ao fim. Para ser justa, é aquela espécie de produção que desperta variados sentimentos, discussões e reflexões durante e após a sessão. Em parte porquê Carboni, que também assina o roteiro ao lado de Marcela Bordin, constrói uma trama encadeada sobre a complexidade dos relacionamentos e as conexões oriundas de situações inesperadas e catastróficas.   

Acompanhamos Joana (Carol Martins), uma ciclista que, ao ir tirar satisfação com uma motorista que a fechou, sofre um atropelamento diferente – ela é carregada no capô do carro dessa senhora por alguns metros. Embora saia aparentemente ilesa e decida esconder o fato de sua companheira (Carina Sehn), o vídeo da situação viraliza e ela precisa lidar com as situações que desenlaçam a partir disso.    

Carboni nos apresenta uma trama bem amarrada, na qual cada atitude reverbera em uma consequência direta; disto provém, por exemplo, a tensão que permeia toda a narrativa. Um dos grandes trunfos de “O acidente” se concentra nas abruptas voltas e revoltas que o atropelamento e suas reverberações ocasionam na vida de Joana, o que imputa insegurança nela e apreensão em nós que a acompanhamos. O conflito e o confronto parecem sempre estar a um passo de explodir e, por isso, o espectador se mantém atento e em posição de sofrer uma catarse junto a protagonista.   

O olhar atento sobre Joana 

 

O silêncio de Joana contribui para essas sensações, uma vez que a personagem não fala sobre si, do que sente, do que lhe incomoda e como as situações a atravessam, dando-lhe um ar niilista em comparação a Cecília, sua companheira, e a todos os personagens que a tangenciam. A exceção é Maicon (Luís Felipe Xavier), o garoto que gravou o atropelamento, o qual aparenta compartilhar de sua indiferença frente a existência. Joana parece estar sempre um passo atrás com todos, escondendo pormenores e nunca deixando-se ser vista por completo. Esse comportamento é natural da personagem ou é fruto da violência que sofrera? Não temos como saber, mas estar diante de alguém com ares tão misteriosos e complexos despertam o desejo de conhecer mais sobre ela, compreendê-la, ajudá-la e, finalmente, termos empatia pela personagem.   

Sua conduta constrasta diretamente com Cecília. Os figurinos de Gabriela Guez explicitam isso nas cores neutras e elegantes da personagem de Sehn em contraponto aos looks casuais e frios adotados para Joana. Cecília, enquanto uma mulher mais madura, quer ainda impor sua maneira de ver o mundo a companheira, por isso essa esconda suas decisões como o desejo de aproximar-se de Maicon. Visto que o menino desperta em Joana os mesmos sentimentos que esta estimula no público.   

A companhia de uma câmera de celular e o que ela pode captar parece chamar mais sua atenção do que a vida que acontece ao seu redor, como a maior parte dos adolescentes. Maicon é pedante e solitário, a compreensão que a protagonista busca dar a ele talvez parta de sua posição como futura mãe e se torna tão importante para o garoto a ponto de querer que esta lhe ocupe a função materna, ainda que possua uma mãe e um pai presentes em sua vida.   

A segurança de elenco e direção  

 

Nessa construção, contudo, é necessário destacar o desempenho de Carol Martins. A atriz consegue passar as sensações específicas quando as palavras da personagem não saem; seu corpo apresenta as angústias, dores e o pisar em ovos que toda a conjuntura que se encontra lhe obriga a fazer. Dessa forma, ela exibe vulnerabilidades diante das incertezas que o futuro lhe prega e percorre os caminhos desconhecidos de maneira tão frágil e compelida que nos convence de sua surpresa diante das reviravoltas.   

Carboni demonstra uma direção segura, carregada de camadas que se desenrolam conforme a teia de situações se encontram e desencontram, emprestando tensão e intimidade na medida certa. Suas sequências são pacientemente pensadas e produzidas para emular o cotidiano e nos fazer ter empatia pelos personagens apresentados. Não há pressa em resolver as questões levantadas, elas se concluem assim como a vida: em momentos inoportunos, mas capazes de gerar explosões de emoções guardadas e protegidas para não nos ferir e nem quem orbita o nosso cotidiano. Por isso seu último ato se torna avassalador, quando os desejos são postos a mesa, os confrontos irrompem de forma elegante e Joana expele de maneira física e emocional tudo que acumulou durante os 90 minutos de projeção.   

“O acidente” é um ótimo exemplar de como o cinema brasileiro contemporâneo produz tramas sagazes, empáticas e emotivas sobre o cotidiano e tudo aquilo que pode se desenrolar a partir de um ato corriqueiro. O tipo de produção que me atrai no circuito europeu e que tive o prazer de contemplar em meu país. Minha torcida é que o filme alcance o público nacional para além dos festivais e que fiquemos de olho no que Bruno Carboni produzirá.