Não é de se espantar que o grande Marcelo Hessel tenha apelado para as alegorias sociais na hora de balizar sua leitura do argentino “O Mal Que Nos Habita”. É porque o filme, no campo puramente fílmico, perde o gás lá pela metade. Resta o trabalho mental de tradução que as alegorias pedem se quisermos tirar proveito da experiência. 

O começo é instigante: pense em um filme de possessão à la zumbis. Dois irmãos no interior da Argentina se deparam com o caso de um possuído nas redondezas. Estamos alguns passos além da putrefação de Regan em “O Exorcista”: o corpo do pobre coitado aparece coberto de feridas e pus que jorra de todos os orifícios possíveis. Mijo, vômito e fezes compõem a decoração dos seus aposentos. Dá quase para sentir o cheiro. 

Pois parece que na Argentina esse tipo de possessão tem se tornado relativamente recorrente, com direito a ditames burocráticos e requerimentos específicos para dar cabo dos flagelados. Sem tempo para todo esse trâmite, o dono de terras da região convoca os dois irmãos mal-encarados para terminar o serviço. Daí que as coisas fogem de controle e o mal ameaça se espalhar de vez. 

GORE ABANDONADO POR FALSA PROFUNDIDADE

Enquanto desfile de efeitos práticos, maquiagens grotescas e trucagens digitais bem aplicadas – tudo a serviço do mais puro suco de gore -, “O Mal que nos Habita” se sustenta muito bem. Isso é verdade especialmente para sua primeira metade, quando tudo ainda é sugestão, quando as regras ainda não foram muito bem delineadas. É aí que, assaltando-nos com imagens putrefatas, o filme se mostra mais eficaz. 

A coisa começa a desandar quando o filme precisa entrar mais a fundo na psique dos personagens, marcadamente depois do caos entrar em erupção na casa da ex-esposa de um dos irmãos. O clímax, passado em uma escola escura empesteada de criancinhas demoníacas, quase salva o trem de descarrilar, mas quando você se pega checando o relógio em um filme de 90 minutos é porque a coisa vai mal. Também não ajuda que os personagens resolvam seguir ou não as regras previamente impostas por “O Mal que nos Habita” de acordo com a necessidade da trama – o que, naturalmente, deve incomodar mais a uns que outros. 

Até lá, teremos machadadas na cara, crianças sendo abocanhadas por cachorros e muito mais. Sem dúvidas, há o bastante aqui para aficionados do gênero que procuram apenas os simples prazeres das imagens de mal-estar e violência. Ao que eu argumentaria que depois de um certo ponto, essa sensação incômoda se transforma em mera impaciência. Soubesse manter a podridão dos seus primeiros minutos viva por mais tempo e a história seria outra. Acaba que o grande pecado aqui é um só: ser enfadonho.