Enquanto assistia ao clássico filme de Bruno Barreto, fiquei pensando em quantas narrativas populares conseguem abordar a ditadura militar e na importância destas para desmistificar as ações governamentais desenvolvidas neste período. Baseado na obra homônima de Fernando Gabeira, “O Que é Isso, Companheiro?” possui uma linguagem prática para discutir o momento, decorrente da escolha do diretor de apresentar um filme de ação com um background político.

O roteiro assinado por Leopoldo Serran (“O Quatrilho”, “Bye Bye Brasil”) acompanha Fernando (Pedro Cardoso), jornalista que se une a um grupo de guerrilheiros urbanos em manifesto contra a ditadura. Junto a eles, orquestra o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick (Alan Arkin), no Rio de Janeiro, em setembro de 1969. A ação tinha por objetivo a libertação de presos políticos, entre eles, o amigo César (Selton Melo).

Barreto toma essa premissa e transforma em um filme de ação. Acompanhamos o passo a passo desde a concepção do sequestro, os pormenores até a libertação do personagem de Arkin; o interessante é perceber como essa construção remete a estética hollywoodiana de filmes do mesmo gênero. O que não é de todo mal, considerando que torna a projeção envolvente, tensa e angustiante na medida certa.

As cenas de preparo para o sequestro e as sequências no cativeiro se destacam, nesse ínterim. A montagem de Isabelle Rathery (“Central do Brasil”) é importante para dar dinamicidade aos planos de Félix Monti (“O Segredo dos Seus Olhos”) e as discussões inseridas no roteiro.

 DESMISTIFICAÇÃO E FUGA DE ESTEREÓTIPOS

A forma como a narrativa é contada nos permite conhecer um pouco mais sobre a guerrilha urbana e a importância do movimento estudantil durante a ditadura militar. Mais do que isso, a união dos estudantes para formar as milícias contra o grupo do poder político simboliza tudo que era necessário abrir mão no período a fim de lutar pela liberdade de expressão e os direitos civis.  São inserções simples feitas de forma isolada que evidenciam as perdas e enriquecem a discussão levantada pelo filme. Uma das que mais me chama atenção é o telefonema que Renee (Cláudia Abreu) faz para o seu pai.

A luta apontava ainda para o desligamento emocional com outras pessoas, algo ressaltado insistentemente pelos líderes do movimento. Serran se preocupa em mostrar também aqueles que preferem prosseguir na ignorância, como é o caso do personagem de Moscovis. A sequência em que ele e Fernando discutem na frente do teatro é um clássico, que anos depois se tornaria um exemplar dos debates online sobre a existência ou não da ditadura e seus efeitos.

Essa é uma pequena mostra da relação dos personagens firmada a partir do momento do cativeiro e salienta a preocupação do diretor em humanizar os personagens por meio da desmistificação de suas imagens, da fuga de estereótipos já cravados na imaginação popular acerca dos envolvidos no AI-5. Temos militantes que tem medo, militares que amargam com problemas familiares e um embaixador norte-americano que não apoia a Guerra do Vietnã. Claro que nada disso desfaz a oposição ideológica entre eles, contudo, oferece tridimensionalidade as suas personas e endossa que essa ambivalência entre seus posicionamentos políticos e sentimentos está mais latente no subtexto da trama do que as torturas e os horrores sofridos no período.

A última cena de Fernanda Torres atesta como a ausência de cenas violentas em prol de diálogos com cunho político e da ação não foi uma escolha ruim. A tortura está lá, ainda que não vista.

A dor e o sofrimento suscitados pelos comportamentos autoritários se fazem presente, só não é preciso cenas chocantes para que isso seja compreendido e esta prova ser uma decisão consciente e acertada diante da proposta da produção. Soma-se a isso o elenco espetacular liderado por Arkin e Cardoso, que consegue transpassar as ideias propostas por Gabeira e Barreto.

“O Que é Isso, Companheiro?” é uma produção interessante para ampliar a discussão e o conhecimento sobre a ditadura militar no Brasil. Focado nas relações e na subversão de estereótipos do período, o filme oferece uma narrativa popular e, por isso, envolvente para o público geral.