O que mais impressiona em O Rei, drama histórico da Netflix e do diretor David Michôd, o mesmo de Reino Animal (2010) e The Rover: A Caçada (2014), são as caras jovens na tela. Geralmente épicos não são estrelados por atores com cara de garotos, nem os vemos comandando exércitos… Trata-se de mais uma versão cinematográfica da ascensão do rei Henrique V ao trono da Inglaterra – as mais célebres são a estrelada e dirigida por Sir Laurence Olivier, Henrique V de 1944; e o Henrique V de 1989, dirigido e estrelado por Kenneth Branagh, ambos baseados na peça de William Shakespeare. A versão de Michôd é com jovens e, aparentemente, deve interessar ao público da mesma idade graças à presença do novo astro Timothée Chalamet (“Me Chame pelo Seu Nome”). Mas também não deixa de fazer comentários interessantes sobre hegemonia e poder masculinos, e sobre o que diferencia meninos de homens, dentro da trama de poder e guerra que já conhecemos.

No filme, Chalamet interpreta Henrique, um príncipe no início, um rapaz que só queria saber de beber e transar. Falstaff (Joel Edgerton), seu amigo e mentor, toma conta do príncipe, que também não tem boas relações com o pai, o rei (Ben Mendelsohn). Mas seu destino é assumir o trono britânico e acabar envolvido num confronto com a França que culmina na histórica batalha de Agincourt, eternizada na cultura mundial pela peça de Shakespeare. Michôd e Edgerton são os autores do roteiro de O Rei, que suaviza o diálogo shakespeariano e torna a história mais acessível para as plateias modernas.

É um filme muito bem conduzido. A direção de Michôd é madura e precisa – filmes históricos muitas vezes se tornam enfadonhos e pomposos, mas o diretor aqui mantém sua história sempre interessante, “pé-no-chão”, e demonstra conduzir bem a maior produção de sua carreira até o momento. A fotografia de Adam Arkapaw parece “enlameada”, tal e qual a época em que a história se passa: a iluminação é bem realista, com tons sombrios que combinam com a trama. E a trilha sonora de Nicholas Britell aumenta a tensão com grandiosidade e acordes sombrios. Fazendo uso desses elementos, e do design de som que nos deixa ouvir cada batida do metal das armaduras, Michôd até encena uma batalha que, a seu modo realista, impressiona quase tanto quanto as que vimos em Coração Valente (1995), Gladiador (2000) ou Game of Thrones, com direito a um belo plano-sequência – provavelmente feito com retoques digitais, mas ainda assim poderoso.

GRANDE ELENCO E A SOLIDÃO DO PODER

E o diretor também conta com um elenco fantástico. Para começar, Edgerton é um ótimo Falstaff – vamos lembrar que Orson Welles já fez o Falstaff definitivo no cinema, mas em O Rei Edgerton cria um personagem marcante, do qual sentimos falta quando não está em cena. Até mesmo atores que aparecem pouco, como Mendelsohn e Lily-Rose Depp, que surge apenas numa cena perto do final, deixam sua marca no filme. Robert Pattinson, como o Delfim da França, rouba todas as cenas em que aparece, com uma atuação ligeiramente tresloucada.

E, no centro de tudo, Chalamet compõe um Henrique que, apesar da pinta de modelo da São Paulo Fashion Week, ao longo da história consegue impor respeito. Sua postura se modifica, seus olhos comunicam muita emoção. O crescimento dele em cena é algo realmente admirável. Até mesmo na cena de discurso às tropas que é meio obrigatória neste tipo de filme, Chalamet se sai bem. É mais uma prova de que este garoto tem talento…

E é justamente o seu rosto jovem que traz a carga dramática para o filme. Falstaff resume a Henrique o que é reinar: “É não ter amigos, apenas inimigos ou seguidores”. Durante toda a história, a luta do protagonista é a luta para se auto-definir, enquanto se vê rodeado de homens velhos que parecem (e dizem) saber mais do que ele. O Henrique de Chalamet e Michôd é um jovem pacifista, preso a uma coroa que não queria e a uma guerra armada pelos homens velhos, sem saber como sair dela. É realmente a história de um jovem rapaz crescendo diante do espectador e se tornando um homem, e um melhor.

Nesse sentido, a cena com a irmã do Delfim, vivida por Depp, é essencial para a jornada e traz uma perspectiva feminista para a história, fazendo-a ter ressonância para os nossos tempos de homens que se acham donos do mundo e abusam dos seus poderes. Numa época em que vemos o homem branco heterossexual lutando para encarar seus próprios privilégios e seu novo lugar no mundo – e muitos falhando ao fazer isso – em O Rei a mensagem é clara: meninos, cresçam, sob pena de ficarem para trás.

‘Uma Família Feliz’: suspense à procura de ideias firmes

José Eduardo Belmonte ataca novamente. Depois do detetivesco – e fraco – "As Verdades", ele segue se enveredando pelas artimanhas do cinema de gênero – desta vez, o thriller domiciliar.  A trama de "Uma Família Feliz" – dolorosamente óbvio na ironia do seu título –...

‘Donzela’: mitologia rasa sabota boas ideias de conto de fadas

Se a Netflix fosse um canal de televisão brasileira, Millie Bobby Brown seria o que Maisa Silva e Larissa Manoela foram para o SBT durante a infância de ambas. A atriz, que alcançou o estrelato por seu papel em “Stranger Things”, emendou ainda outros universos...

‘O Astronauta’: versão ‘Solaris’ sem brilho de Adam Sandler

Recentemente a revista Forbes publicou uma lista com os maiores salários recebidos por atores e atrizes de Hollywood em 2023. O N.1 é Adam Sandler: o astro recebeu no ano passado nada menos que US$ 73 milhões líquidos a partir de um contrato milionário com a Netflix...

‘Imaginário: Brinquedo Diabólico’: tudo errado em terror sem sustos

Em uma segunda à tarde, esgueirei-me sala adentro em Niterói para assistir a este "Imaginário: Brinquedo Diabólico". Devia haver umas outras cinco pessoas espalhadas pela sala 7 do multiplex. O número diminuiria gradativamente pela próxima hora até sobrar apenas um...

‘Duna – Parte 2’: Denis Villeneuve, enfim, acerta no tom épico

Abro esta crítica para assumir, que diferente da grande maioria do público e da crítica, não sou fã de carteirinha da primeira parte de “Duna”. Uma das minhas maiores críticas a Denis Villeneuve em relação a adaptação cinematográfica do clássico romance de Frank...

‘To Kill a Tiger’: a sobrevivência das vítimas do patriarcado

“Às vezes a vida te obriga a matar um tigre”.  De forma geral, “To Kill a Tiger” é uma história dolorosa com imagens poeticamente interessantes. Um olhar mais aprofundado, no entanto, mostra que se trata do relato de busca de justiça e amor de um pai para com uma...

‘O Homem dos Sonhos’: criativa sátira sobre fenômenos midiáticos

Quando li esse título a primeira vez, pensei que deveria se tratar de mais uma história patriarcal romântica e eu não poderia estar mais enganada. Dirigido por Kristoffer Borgli e protagonizado por Nicolas Cage, “O Homem dos Sonhos” aborda de forma discreta o fenômeno...

Como ‘Madame Teia’ consegue ser um fiasco completo?

Se os filmes de heróis da Marvel vêm passando por um período de ócio criativo, indicando uma possível saturação do público em relação às histórias, a Sony tem utilizado os “pseudos projetos cinematográficos” do universo baseado em propriedades do Homem-Aranha para...

‘Bob Marley: One Love’: a vulnerabilidade de uma lenda

Acredito que qualquer pessoa no planeta Terra sabe quem é Bob Marley ou já escutou alguma vez as suas canções. Se duvidar, até mesmo um alienígena de passagem por aqui já se desembestou a cantarolar um dos sucessos do cantor jamaicano, símbolo do reggae, subgênero...

‘Ferrari’: Michael Mann contido em drama sobre herói fora de seu tempo

Coisa estranha: a silhueta de um homem grisalho, a linha do cabelo recuando, adorna um balde de pipoca. É Adam Driver como Enzo Ferrari, em uma ação de marketing curiosa: vender o novo filme de Michael Mann como um grande blockbuster para a garotada. Jogada inusitada,...