Em 1977, após dirigir um monte de comerciais, Ridley Scott iniciou a carreira de diretor de cinema com Os Duelistas. Ainda estávamos muito longe do termo “masculinidade tóxica” ser cunhado, mas essencialmente esse era o tema da obra: dois sujeitos na França napoleônica, interpretados por Keith Carradine e Harvey Keitel, ficavam duelando ao longo de anos e anos por causa de noções de honra e de hombridade que, com o tempo, começavam a parecer cada vez mais absurdas. Foi a primeira obra-prima do diretor – sim, é – e logo a seguir ele faria mais duas – Alien (1979) e Blade Runner (1982) – impressionando o mundo com seu senso visual.

Ao longo das décadas, o já octogenário Scott teve altos e baixos na sua trajetória, fez mais alguns ótimos filmes e outros não tão bons, e viveu as mudanças no cenário do cinema neste (quase) meio século de carreira. Em 2021, ele completou um circulo com O Último Duelo, inspirado numa história real. É mais um drama histórico do diretor que dialoga um pouco com o seu primeiro longa, mas acima de tudo, expõe uma perspectiva moderna para uma história antiga, como Scott já tinha feito algumas vezes antes.

Estamos na França de 1386 e um duelo agitou o país. Marguerite du Carrouges (interpretada por Jodie Comer), esposa do cavaleiro Jean du Carrouges (Matt Damon), acusa outro cavaleiro, Jacques Le Grit (Adam Driver), de tê-la estuprado. Os dois homens foram amigos por muitos anos, mas se afastaram com o tempo – o libertino e carismático Le Grit era mais bem-quisto pela nobreza da época, e acabou se apropriando de privilégios antes destinados a du Carrouges. A acusação levou a um julgamento na corte, e depois a um duelo até a morte entre os dois homens.

 ‘RASHOMON’ DE SCOTT NA IDADE MÉDIA

O grande “pulo do gato” de O Último Duelo é a abordagem do roteiro, escrito por Damon, Ben Affleck, retomando a parceria de Gênio Indomável (1997) – Affleck também atua no filme como o conde Pierre, usando uma barbicha engraçada e cabelo oxigenados – e a cineasta Nicole Holofcener, recém-indicada ao Oscar por Poderia me Perdoar? (2018). E qual é essa abordagem? A estrutura estilo Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, na qual a narrativa, dividida em capítulos, apresenta os pontos de vista de Jean, de Jacques e de Marguerite sobre o incidente.

Claro que essa estrutura cobra um preço: algumas cenas se repetem, de acordo com o ponto de vista que está sendo focado. Mas aí também reside a inteligência de Scott, do roteiro e da montagem de Claire Simpson: há pequenas variações em algumas dessas repetições e elas dizem algo a respeito dos personagens. Esses pequenos detalhes ampliam o fascínio do filme. Consta-se que Affleck e Damon escreveram os dois primeiros “capítulos” do roteiro e Holofcener o terceiro. O filme já estava bom, mas é quando vemos o ponto de vista de Marguerite que O Último Duelo sobe de nível ainda mais.

Tendo como base a poderosa atuação de Jodie Comer, é nesse trecho que o filme revela a agudez da sua visão. Ao abordar a condição feminina no contexto da Idade Média, O Último Duelo emociona e revolta seu espectador, mas, de algum modo, ele nunca apresenta um retrato caricatural do contexto histórico. Vemos os desdobramentos jurídicos do caso e a tentativa de se fazer justiça, com o pensamento legal da época. Também temos noção dos eventos históricos que conduziram os personagens até aquele momento – uns saltos temporais no inicio do filme evocam memórias de Os Duelistas. O mundo medieval de O Último Duelo é perfeitamente realizado, graças à experiência de Scott e colaboradores como o diretor de fotografia Daruis Wolski e o designer de produção Arthur Max, que já trabalharam com o cineasta em épicos anteriores.

‘QUESTÃO DE PROPRIEDADE’

Tudo isso para contar uma história que pode ser medieval, mas também é terrivelmente atual. Num contexto pós-movimento #MeToo, a trama de O Último Duelo ressalta o absurdo da condição feminina – a certa altura um dos clérigos afirma que “estupro não é um crime contra a mulher, é questão de propriedade”. Aborda também o poder de homens que subjugam mulheres enquanto se acham “os heróis” das suas histórias particulare e usam pretextos como fé em Deus e noções de masculinidade para tal.

Não é um filme sutil e nem é para ser. E toma partido: mesmo com algumas cenas violentas de batalha aqui e ali, e com um clímax realmente intenso – o duelo entre Le Gris e du Carrouges – o foco nunca perde de vista a mulher e o horror do mundo ao seu redor. O que muita gente às vezes ignora é o quanto Ridley Scott às vezes pode ser um cineasta sombrio. Percebe-se em alguns dos seus filmes um teor pessimista, quando não niilista mesmo.

Por exemplo, em Alien e seus derivados, o universo não é fascinante, mas sim cheio de coisas que querem nos matar. Em Cruzada (2005), outro épico medieval, víamos a humanidade presa numa guerra religiosa não resolvida e que poucos anos antes tinha desembocado nos atentados de 11 de Setembro. O próprio Os Duelistas só se resolvia a um ato custo pessoal para seus personagens.

E em O Último Duelo, Scott volta no tempo para mostrar que não avançamos tanto assim em algumas questões. O faz tão bem, com seu melhor filme em anos, que é até difícil refutar ou desprezar seu argumento.

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