“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir raça, numa contemporaneidade que se mostra cada vez mais conservadora, ainda requer certo grau professoral. E uso esse termo considerando dois lados presentes nele: o instrutivo e o confessional. 

Ao abraçar os dois conceitos, DuVernay mergulha na jornada de Isabel Wilkerson (Aunjanue Ellis-Taylor) enquanto esta produz sua tese doutoral. Vencedora de um Pulitzer, Isabel parte de inquietações do próprio cotidiano para formular um tratado racial que compara o racismo nos Estados Unidos ao Holocausto nazista e ao sistema de castas indianos. Basta essa premissa para se observar o quão ambicioso e pretensioso é o projeto, o que o torna irregular e, em certos momentos, difícil de acompanhar.

 Entre a academia e o luto

Parte dessa complexidade se deve aos caminhos escolhidos em “Origin”. É interessante observar a ousadia de DuVernay em transformar uma tese em cinema ficcional. Preciso dizer, no entanto, que a abordagem escolhida casaria muito mais com um documentário envolto por testemunhos, narrações subjetivas e relatos históricos — elementos amplamente utilizados aqui — do que uma ficção. A forma como os personagens são conduzidos e apresentados, por exemplo, se assemelham mais a citações e discussões textuais entre teóricos a serem explorados em debates acadêmicos do que com personagens tridimensionais, um exemplar em extinção nesta produção.

Por outro lado, a decisão da diretora talvez se justifique pelo caráter dramático que a obra comporta. Vale lembrar que “Origin” é considerado uma biografia de Wilkerson; desta forma, as perdas que lhe são acometidas durante a projeção realmente ocorreram durante o processo de produção do material acadêmico. Um dos pontos positivos do filme é justamente como o roteiro utiliza o falecimento, em um período tão curto, de três familiares da protagonista para impulsionar suas indagações, curiosidades e busca por aplacar inquietações que poderiam estar acomodadas pela rede de afeto que a circundava. Assim, Isabel abraça a pesquisa como uma forma de lidar com o luto e também de manter a memória dos seus por meio da voz emitida no discurso acadêmico. Ellis-Taylor brilha nesse processo.

O magnetismo de “Origin”

A atriz tem uma presença magnética e arrebatadora; sentimos a dor e também a motivação acadêmica da personagem, exacerbando o quão persuasiva e profunda está sua interpretação. Ao mesmo tempo em que Isabel é confiante, carrega dúvidas e vulnerabilidades que a tornam uma pessoa cautelosa, mas sem medo de correr atrás do que acredita. Ellis-Taylor pontua bem cada transição comportamental, os closes e planos detalhes que o diretor de fotografia Matthew Lloyd (“Homem-Aranha: Longe de Casa”) utiliza também auxilia a compor o seu fluxo emocional e ao público criar uma intimidade com todos os pormenores de sua jornada já citados; dessa forma, o filme ganha contornos mais apurados com sua interpretação. 

“Origin” apresenta ainda uma denúncia tão grave e substancial quanto Duvernay o fez em “13a Emenda” e “Olhos que Condenam”, reunindo uma carga emocional tão forte quanto a minissérie da Netflix. Em uma cena, por exemplo, uma criança é estigmatizada e proibida de entrar na piscina simplesmente por ser negra; mesmo se a narração não tivesse apontado o quanto isso afetou a trajetória do menino, teria nos abalado de toda a forma. A diretora soma aos aspectos visualmente dolorosos, os dados e informações de como a estrutura de poder hierárquico das castas raciais apenas muda de nação e cultura, aplicando o mesmo modus operandi sobre os grupos marginalizados.  Se a violência é o que mantém a hierarquia social em pé, o filme busca provar que essas estruturas estão ligadas a um senso cíclico da história.

DuVernay não escolhe uma abordagem fácil de acompanhar, o roteiro coloca em choque vários conceitos sociais e antropológicos, que se estranham até se afinarem, além de misturar várias linhas narrativas e cronológicas que se perdem e nos confundem com a montagem caótica adotada. Apesar de tudo isso, a narrativa está constantemente nos lembrando a discriminação e o processo de desumanização liderado por outros seres humanos e são esses momentos pujantes e com ressonância que criam a atmosfera emocional e reflexiva que “Origin” se propõe.