Desde o tempo em que filmava pornôs pra ganhar uns trocados, a carreira de Abel Ferrara é marcada pela marginalidade. Mas não é o caso de um grande talento relegado às margens de Hollywood apenas. Este é um cara que orgulhosamente ostenta seus demônios e obsessões como tatuagens, que mergulha fundo na exploração de uma masculinidade torturada e auto-destrutiva, que trata convenções bobas como “trama” e “progressão dramática” como meros detalhes (se tanto). Em outras palavras, é um iconoclasta.

E nos últimos 20 anos – desde, talvez, “New Rose Hotel” –, Ferrara tem demonstrado cada vez menos interesse em sequer tentar se enquadrar no cinema hollywoodiano. Até mesmo o tal do cinema independente parece restritivo demais para o diretor – este é um sujeito gozando da liberdade que só mesmo a sobriedade e a terceira idade podem proporcionar.

Morando na Itália, Ferrara segue um ritmo próprio: faz filmes na Europa pelo preço de um salgado e um Guaravita, um atrás do outro. Quanto mais barato, mais único o filme se torna – vide o delírio pandêmico de “Zeros e Uns” (e aqui, o gênero “Thriller/Guerra” atribuído ao longa pelo Google soa quase como uma piada vindo de quem não faz ideia de como vender um filme desses).

Dois filmes em um

Então é claro que uma cinebiografia do Padre Pio dirigida pelo Ferrara seria, no mínimo, não convencional. A começar pelo fato de que Pio (Shia Labeouf) ocupa só metade do longa – e talvez a metade menos importante. É que o restante do filme – para o qual as cenas de Labeouf funcionam mais como interlúdios do que qualquer outra coisa – é dedicado aos acontecimentos que culminaram no massacre de San Giovanni Rotondo.

É a Itália pós-Primeira Guerra. A miséria assola os trabalhadores. Uma palavrinha nova no vocabulário campesino assusta os donos de terras: “comunismo”.

A Igreja, diga-se de passagem, estava mancomunada a essas elites, ungindo os rifles que alvejavam os miseráveis da cidade. Então, enquanto o mundo pega fogo lá fora, Padre Pio batalha contra seu inferno pessoal dentro das paredes do monastério.

É, o zumbido dissonante que se sobrepõe aos badalos do sino na trilha sonora realmente não deixa dúvidas: estamos num mundo cindido. Como pode um homem se tornar santo, como suprir a fome do espírito, se o povo tem fome de pão?

Estado de graça

É a essa pergunta que Labeouf tenta responder por conta própria – e sua angústia permeia todo o filme. Envolto num chiaroscuro pixelado, com seus lábios sempre tremendo, os olhos cheios d’água e a câmera tão próxima que podemos discernir cada fio da sua barba e cada poro dilatado, o ator parece atender a um chamado divino.

A devoção de Labeouf é tanta que ele parece estar em carne viva. Assistimos a um ator sendo beatificado bem na frente da câmera – de modo comparável, talvez, à Falconetti em “A Paixão de Joana D’Arc”, de Dreyer.

O isolamento físico de Pio, enclausurado no monastério, coincide com seu isolamento dramático, sem nenhuma interface direta com a trama do massacre. Até, é claro, os instantes finais. É que a tormenta de um único homem é também a tormenta do mundo inteiro e, de tempos em tempos, um corpo é escolhido para sangrar por toda a humanidade.