Anacronismos são bem-vindos em adaptações literárias de obras que datam de décadas, as vezes séculos atrás. De “Maria Antonieta”, da Sofia Coppola ao “Emma”, de Autumn de Wilde, podendo ser mais ou menos sutil, mas sempre tendo em mente que é preciso não se perder e comprometer a essência da história. E com sua insistência em cometer equívocos, que já ultrapassou qualquer limite aceitável e é apenas irritante, a Netflix cometeu o erro sem reparação que é “Persuasão”, de Carrie Cracknell. 

Dakota Johnson é a melancólica Anne Elliot, criação de Jane Austen e heroína de “Persuasão”. A obra, lançada postumamente, tem um tom bem diferente de “Emma”, “Razão e Sensibilidade” ou mesmo “Orgulho e Preconceito”. A mágoa e o remorso estão muito presentes já que Anne foi persuadida por familiares e amigos a não se casar com o pobretão Frederick Wentworth. A história começa oito anos depois desse fato, quando ele reaparece na vida dela rico após uma carreira bem-sucedida como oficial da Marinha. 

Austen quis apontar a ascensão de homens que não eram herdeiros, como seus dois irmãos que prosperaram na Marinha e, segundo sua biógrafa, Claire Tomlin, “Persuasão” é uma obra à frente de seu tempo em especial por sinalizar para “as mulheres que tinham perdido suas chances na vida e que nunca desistiram de uma segunda primavera”. 

Essa “mistura de “Bridgerton com “Bridget Jones”, de acordo com o Hollywood Reporter (mais um caso de veículo que não faz crítica, mas, sim sinopse ampliada com algumas frases de efeitos e bobagens como essa, para estampar os cartazes e divulgações dos filmes) acompanha a mocinha de trinta e poucos anos, Anne, quebrando a quarta parede e conversando com sua audiência enquanto entorna taças de vinho ou escreve no seu diário. 

A IRRITANTE QUEBRA DA QUARTA PAREDE

A quebra da quarta parede se torna algo assaz quando, bem cada nova cena, lá está Anne Elliot falando para a câmera. O artifício narrativo passa longe de ser eficaz, se tornando uma fonte constante de irritação e descrença de como é possível arruinar uma adaptação. Porque não poupam nem o ápice da obra, a declaração de Wentworth, que contém frases icônicas como: “você trespassa minha alma. Sou metade agonia, metade esperança”. A direção e roteiro da Ron Bass e Alice Victoria Winslow destroçam ainda mais qualquer lembrança de Austen, merecendo serem processados pelos herdeiros da escritora. 

Somando as nuances juvenis e indolentes da Anne vivida por Dakota – que torna “Fleabag” e Ferris Bueler em personagens agradáveis e menos histriônicas do que são em comparação -, com as super caricatas composições de personagens da obra literária como Sir Walter Elliot, Mary, Elizabeth, Lady Russel e até Louisa, fica impossível não pedir desculpas a Jane Austen por essa tolice em forma fílmica. 

O olhar de peixe morto e cheio de desespero e não de paixão de Cosmo Jarvis, o intérprete de Wentworth, que não tem nenhuma química com Dakota em contrapartida. Cabe a William Elliot (vivido com muito charme e coerência por Henry Golding) ser um alívio importante em algumas sequências, ainda assim incapaz de fazer “Persuasão” ser considerada uma adaptação decente. Pois, por mais que sejam clássicos e quadrados em suas construções narrativas, tanto a série de 1995 da BBC ou o filme de 2007 com Sally Hawkins como uma Anne perfeita, são ótimos exemplos de adaptações coerentes.

Nada, nada, nem o êxito de “Bridgerton” na plataforma, o carisma de Dakota ou o apelo que uma autora tão popular como Austen ainda conserva nesse século, justifica tamanha pataquada supostamente moderninha.

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