Um filho desaparecido e uma mãe que nunca perdeu a esperança de encontrá-lo. No percurso, a luta contra uma grande corporação. Poderíamos estar falando de “Amor de Mãe” – novela das 21h interrompida pela pandemia de covid-19 -, mas esta é a trama de “Piedade”, filme de Cláudio Assis (“Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas”) lançado na plataforma digital do Itaú Cultural.

A trama se passa na Praia da Saudade, na pequena cidade de Piedade, interior de Pernambuco, e entrelaça o ativismo e a destruição ambiental ao drama familiar. O resultado é um filme sensível carregado de resistência e dor. A narrativa se desenvolve a partir da chegada de Aurélio (Matheus Nachtergaele), um representante da Petrogreen. A empresa vem afetando o ecossistema marítimo da região, impedindo, entre outras coisas, que o mar seja utilizável para banho. No entanto, a presença do executivo é o motor para que segredos adormecidos e dores ganhem evidência. Isso faz com que o drama familiar seja a parte mais interessante do filme.

O roteiro de Anna Francisco, Dillner Gomes e Hilton Lacerda traça duas narrativas paralelas. De um lado, acompanhamos dona Carminha (Fernanda Montenegro) e seus filhos Omar Shariff (Irandhir Santos) e Fátima (Mariana Ruggiero), que tiram seu sustento de um bar e restaurante que fica à beira-mar. Já a outra trama traz Sandro (Cauã Reymond), dono de um cinema pornô no centro da cidade, e seu filho Marlon Brando (Gabriel Leone), um jovem ativista ambiental.

AUSÊNCIA E MELANCOLIA

O distanciamento e aproximação entre os dois núcleos familiares é muito bem orquestrado, também, pela cinematografia de Marcelo Durst por meio do uso das cores, iluminação e planos. Enquanto o núcleo da família litorânea possui uma coloração terrosa evidenciando a ligação com o espaço e a determinação de manter-se em oposição à Petrogreen, Reymond e seu cinema assumem tons mais escuros. O próprio ambiente depõe a favor disso, entretanto, essa escolha fala muito mais sobre o personagem.

Sandro é melancólico e parece ser uma pessoa carente de afetos. Muito disso é fruto da ausência de aceitação familiar, contribuindo, por exemplo, para que se deixe levar pela atração física que sente por Aurélio. Quando as duas tramas se convergem, é possível notar o seu contraponto em relação ao restante do elenco. O personagem se retrai, se afoga em frustrações e tristeza. Cauã Reymond se despe do galã global e incorpora uma pessoa destruída por dentro, mas que precisa aparentar ser forte para seguir a vida.

Em contraponto ao dono do cinema pornô, está seu filho: Marlon é impulsivo e expansivo. Seu ativismo e resistência o colocam em choque direto ao pai. Porém, suas características o aproximam de Omar. A composição dos personagens é eficaz em traçar um paralelo entre os dois personagens. Ambos são símbolos de luta e resistência dentro da produção, mas com perspectivas diferentes. Enquanto o personagem de Leone ainda se pauta em ilusões para manifestar-se, o filho de dona Carminha estabelece uma real representatividade de resistência a empresa de petróleo.

DOR É RESISTÊNCIA

O que une os dois núcleos e alimenta o discurso político de “Piedade”, no entanto, é a dor. Em dado momento, o personagem de Gabriel Leone afirma que a dor também é uma resistência. E cada personagem do longa-metragem de Assis é marcado por ela de alguma forma. Para alguns, ela aparece como uma solidão gananciosa fruto de autoenganos, para outros, é a sua intensidade que os machuca imperceptivelmente.

Nessa construção, a montagem de Karen Harley consegue aproveitar os bons momentos de “Piedade”, especialmente, pelo grande elenco liderado pela preciosa Fernanda Montenegro. Infelizmente, no entanto, as cenas de ativismo parecem deslocadas e simplesmente encaixadas na montagem. Sem criar empatia e identificação com o público e o argumento politizado da produção.

Mesmo assim, “Piedade” mostra-se um trabalho maduro e muito afetivo. De forma objetiva, as temáticas executam discussões necessárias para o atual momento político e, mais do que isso, chamam atenção para as relações interpessoais. As carências e intensidades dos personagens dialogam muito bem com o público e, talvez, este seja o maior mérito da obra do diretor pernambucano ao lado da escolha de grande elenco.

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...

‘Rebel Moon – Parte 2’: desastre com assinatura de Zack Snyder

A pior coisa que pode acontecer com qualquer artista – e isso inclui diretores de cinema – é acreditar no próprio hype que criam ao seu redor – isso, claro, na minha opinião. Com o perdão da expressão, quando o artista começa a gostar do cheiro dos próprios peidos, aí...

‘Meu nome era Eileen’: atrizes brilham em filme que não decola

Enquanto assistia “Meu nome era Eileen”, tentava fazer várias conexões sobre o que o filme de William Oldroyd (“Lady Macbeth”) se tratava. Entre enigmas, suspense, desejo e obsessão, a verdade é que o grande trunfo da trama se concentra na dupla formada por Thomasin...

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...