Disponível no catálogo da Netflix, “Pose” é mais uma produção de Ryan Murphy em parceria com Brad Falchuk. E é importante lembrar que a colaboração entre eles já rendeu sucessos mundiais como “Glee”, “American Horror Story”, “Scream Queens” e “The Politician”. Agora, “Pose” se junta à categoria.
Ambientada no final da década de 1980, a série resgata o cenário dos bailes LGBTQ+ de Nova York, símbolos de arte, luta e resistência. Mais uma vez, Murphy utiliza a cultura pop como ferramenta para contar história. A escolha para esse contexto, no entanto, volta-se para um público bem específico, embora o drama que os permeia seja universal. A história retratada é a estimada – e antiga – trama de superação com personagens cativantes que fisgam o público assim que aparecem.
Narrada em capítulos que abordam questões tangentes à comunidade LGBTQ+ da época, “Pose” conduz o público à imersão nesse universo e a desenvolver empatia pelos personagens. Estão presentes temas como rejeição, invisibilidade social, prostituição e a descoberta do HIV. Aqui, Murphy deixa o humor debochado de lado para aprofundar-se em pontos de tensão que não são limitados ao nicho da série, mas que também atingem diversas parcelas da sociedade, seja por conflitos ideológicos, políticos ou afetivos, que é a proposta da produção.
Resistência otimista
Apesar de imergir no ambiente de festividades, a produção capta temas delicados. Há várias subtramas e, em cada uma, uma voz que necessita ser ouvida. “Pose” toca na ferida e faz críticas ao conservadorismo da família tradicional, cutuca o governo Donald Trump e aborda a luta por aceitação dentro da comunidade LGBTQ+ que, por sua vez, também é regida por estigmas e discriminações.
Umas das subtramas que mais chama atenção é a da epidemia de HIV. De forma sensata, sem romantizar ou explorar a dor, “Pose” discute a presença do vírus em um momento que contraí-lo era sentença de solidão e morte.
Murphy parte de um princípio diferente do que escolhera em “The Normal Heart”, longa que evidenciava o quão destruidor foi o vírus na década de 1980. Em “Pose”, sua mensagem volta-se para a convivência com o vírus de forma otimista, como suas produções costumam ser. Ainda sim, traz um dos episódios mais bonitos e tristes dos últimos tempos: “O amor é a mensagem”.
Inclusão no discurso e em cena
“Pose” se destaca não apenas por abordar a comunidade LGBTQ+, mas trazê-la para dentro da produção: a produção escalou o maior elenco regular gay e transexual da história da TV norte-americana. Por conta disso, há bastante verossimilhança nas interpretações, afinal, a trajetória das personagens se assemelha com a realidade de muitas artistas trans fora dos holofotes. As escalações de MJ Rodriguez, Indya Moore, Dominique Jackson, Hailie Sahar e Angelica Ross salientam o cuidado e acerto na escolha do casting, pois todas brilham em cena e entregam personagens tridimensionais com textos ricos e interessantes.
Há espaço também para a presença de homens negros e homossexuais: Ryan Jamaal Swain, Dyllón Burnside e Billy Porter interpretam personagens renegados pela sociedade da época e buscam nos bailes um refúgio distante da discriminação. Eles são fundamentais para o envolvimento emocional da narrativa.
Swain e Porter protagonizam, em momentos distintos, cenas capazes de evocar sentimentos de revolta e impotência no espectador. Uma delas, no episódio “O amor é o remédio”, rendeu a Billy Porter o Emmy de Melhor Ator em Série Dramática deste ano.
De ‘Paris is Burning’ a ‘RuPaul´s’
Como toda produção de Ryan Murphy, a série carrega várias referências. Dessa vez, o showrunner destaca os anos 80 e a cultura LGBTQ+. A própria estrutura dos bailes aponta didaticamente como a história da comunidade foi fomentada durante os anos 80: os hits do momento, desfiles por categoria, notas de jurados.
Entre as produções homenageadas pela série está o documentário “Paris is Burning”, que segue como icônico registro da cultura gay e voguing de Nova York, e cuja influência ainda reverbera. Hoje, por exemplo, é possível reconhecer muitos de tais elementos no famoso reality show RuPaul’s Drag Race, principalmente nos bordões utilizados por Mama Ru.
ENTRE O SONHO E A REALIDADE
Com figurinos bem trabalhados e fotografia que resgata o ambiente dos anos 80, o resultado é uma obra de arte magnífica e autoral. Esse é o projeto mais audacioso de Ryan Murphy, e olha que estamos falando de um artista que passeia por vários gêneros e sempre entrega produções fenomenais. Em “Pose”, Murphy cria um universo particular: planos mais longos, cortes bruscos e enquadramentos particulares enriquecem a narrativa.
A paleta de cores brinca com as ideias de sonho e realidade. Por um lado, há cores vibrantes por trás de saltos altos e tecidos provocantes; do outro, a realidade marrom e desbotada busca constantemente fixar o pé dos personagens no chão e encobri-los com os padrões impostos pela sociedade, fazendo com que se percam em meio a tantos dilemas. A sensação que se tem é que há sempre algo a mais que nossos olhos não conseguem acompanhar.
“Pose” oferece voz às minorias, colocando em tela suas vivências, dramas, dificuldades, dilemas e, principalmente, eles mesmos como intérpretes. A obra nunca esquece que a comunidade para qual se volta é carregada de afeto, animação e superação, algo que marca todos os episódios da narrativa. Sem dúvida, “Pose” é um close certíssimo.