Na história do cinema, não faltam casos de filmes que se utilizam de pontos de partidas comuns ou nada extraordinários para gradualmente representarem o panorama de uma sociedade e suas graves desigualdades. São casos de obras-primas como “Ladrões de Bicicleta”, ponto fundamental do neorrealismo italiano dirigido por Vittorio de Sica, até os recentes “Que Horas Ela Volta?”, simbólico longa de Anna Muylaert, e “Parasita”, de Bong Joon-Ho e primeiro ganhador do Oscar de Melhor Filme não falado em inglês. 

Em menor escala, claro, é o que faz “Rabiola”, curta roraimense premiado em três categorias da quarta edição do Festival Olhar do Norte – Melhor Filme do Júri Popular, Atuação com Ixemar Camacho e Roteiro. O ponto de partida é um duelo nos ares entre dois garotos empinando pipa. Quem derrubar fica com o papagaio do outro, certo? Hum… não é bem assim. 

Justamente nesta quebra daquilo que deveria ser lógico dentro da regra do jogo que o diretor Thiago Briglia amplifica o escopo inicial de “Rabiola”. Afinal, o embate no céu está cercado das tensões em solo e das desigualdades tão típicas de onde vivemos ao envolver de um lado o garoto brasileiro, riquinho (Caique Cordeiro) e do outro dois humildes irmãos venezuelanos (Abrahan Melendez e Bianca Gonzalo). Essa disputa ocorre em Boa Vista, cidade que enfrenta uma forte tensão social desde a imigração em massa provocada pela crise política e econômica do país vizinho. Os contrastes são explorados com muita eficiência visualmente seja nos veículos em que cada um deles chegam, na ajuda ou falta dela para empinar a pipa e, claro, na irônica e deliciosa cena do interminável rabo do papagaio na saída do carro. 

UNIVERSALIDADE CATIVANTE

Com signos facilmente codificados pelo público, “Rabiola” já fisga o público, mas, o roteiro da dupla Briglia e Elder Torres vai além ao abordar como o drama dos venezuelanos perpassa o já terrível preconceito secular daqueles que chegam a novas terras. A partir do motorista Raúl (Jesus Cova), e da babá do futuro “cidadão de bem” e mãe dos dois irmãos Isabel (Ixemar Camacho), ambos venezuelanos, nota-se uma linha sutil e cruel do jogo de poder econômico, onde eles precisam abdicar das próprias vidas e valores para servirem aos seus patrões ainda que esta relação esteja sempre por um fio. Um verdadeiro suco de Brasil. 

Tudo isso, senhoras e senhores, em 13 minutos. Sim, uma história com cinco personagens bem desenvolvidos e um subtexto tão rico e explorado de forma tão eficiente em poucos 13 minutos. Méritos não apenas à direção e ao roteiro, mas, também à eficiente e dinâmica montagem de Yare Perdomo. Aproveitando os campos abertos e extensos das praças de Boa Vista, a direção de fotografia de Daniel Tancredi simboliza como aquela luta pelo papagaio traz um embate muito maior do que simplesmente a superfície demonstra. Por fim, preciso exaltar o trabalho de som de Cláudio Lâvor, um gigante do setor na Região Norte. 

Através da universidade de seus temas e, ao mesmo tempo, falar de males tão enraizados da nossa história, “Rabiola” cativa de forma hábil, inteligente e sensível o público. Um pequeno tesouro roraimense.